O território da Comunidade Quilombola Barra da Aroeira fica localizado entre os municípios de Santa Tereza, Lagoa do Tocantins e Novo Acordo, distante aproximadamente 100 km de Palmas, capital do estado do Tocantins. A comunidade é composta por 120 famílias, sendo algumas numerosas, cada uma com suas roças, onde cultivam arroz, milho, mandioca, feijão, abóbora, hortaliças, frutas, criam galinhas e porcos, praticam o extrativismo do pequi, buriti, bacaba, barú, capim dourado e muitos outros produtos, compondo uma grande diversidade. Encontramos entre os quilombolas da comunidade parteiras, benzedeiras, rezadeiras, raizeiras, tocadores de viola de buriti e foliões (folias de Reis e do Divino), que realizam todos os anos suas festas, rezas e mantêm sua cultura viva. Todavia, estão numa região onde o agronegócio se expande com grande velocidade e agressividade e a comunidade é vítima de todos os tipos de violência.

Dona Isabel colhendo capim dourado no território quilombola. Crédito: APA-TO.
Dona Isabel colhendo capim dourado no território quilombola. Crédito: APA-TO.

A comunidade preserva a sua história. Isabel Rodrigues, liderança de Barra da Aroeira, conta que o patriarca da comunidade, Félix Rodrigues, participou da Guerra do Paraguai e recebeu a terra como pagamento:

Eu não sei quantos anos passou, só sei que ele ajudou a vencer a guerra… aí Dom Pedro mandou chamar ele para ver o que que ele queria em troca do serviço prestado… ele falou que queria unicamente um pedaço de chão para ele morar, ele e a família dele, morar sossegado, sem fazendeiro, sem ter o direito de fazendeiro nenhum tomar a terra dele. Então Pedro II o mandou vir escolher no Alto Goiás, aí ele veio escolher esse pedaço de chão, é doze léguas em quadro, os limites de água para que nunca acabasse. A primeira escritura que foi a que o véio Félix trouxe queimou no fogo de uma casa, aí depois Manoel Maroto mais o velho Jacó foi lá e buscou outra escritura. Essa escritura foi a que o doutor Hermano tomou lá em Porto e sumiu [na época dono do cartório de registro de imóveis de Porto Nacional].[1]

Isabel Rodrigues. Crédito: APA-TO.
Isabel Rodrigues. Crédito: APA-TO.
Desde essa época a comunidade luta pela defesa de seu território. Em 2006 recebeu o certificado de autodefinição como comunidade remanescente de quilombo da Fundação Cultural Palmares e abriu-se o processo de regularização de seu território no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) Tocantins. A primeira etapa do processo de regularização territorial, o relatório antropológico, foi concluída em 2008, e em 2011 foi concluído e publicado o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
Liderança de Barra da Aroeira. Crédito: APA-TO.
Liderança de Barra da Aroeira. Crédito: APA-TO.
Notas

APA-TO, COEQTO, AJAQUITEBE e Associações. Caderno Saberes e Fazeres Quilombolas: Planos de Gestão Territorial. 2020.

O RTID identifica um território de aproximadamente 62 mil hectares, com cerca de 280 imóveis rurais incidindo sobre a área. Não por acaso, o processo de regularização foi e segue sendo contestado por um grupo de grandes fazendeiros, dentre eles políticos poderosos do estado. Em 2015, depois de 4 anos de análise das contestações, o comitê de decisão regional do Incra SR-26/TO, considerando as análises do setor técnico e da Procuradoria Regional, por decisão unânime, pugna pelo indeferimento das contestações apresentadas.

No entanto, alegando que a regularização do território poderá gerar graves problemas econômicos, sociais e políticos na região e até para estado do Tocantins, o Incra Tocantins encaminha o processo para análise no Incra Sede (Brasília), e este é engavetado. Fica explícito que o órgão fundiário no estado cedeu à pressão política dos fazendeiros invasores. A Procuradoria da República – Tocantins judicializa a questão e o Tribunal Regional Federal publica, em 15/07/2019, decisão ordenando ao INCRA que conclua a regularização do território[2]. O processo permanece paralisado no órgão fundiário.

Dentre os fazendeiros invasores, destacam-se o ex-vice-prefeito de Novo Acordo, Leto Moura Leitão (PR) – também acusado de encomendar o assassinato do prefeito do município, Elson Lino Aguiar (MDB) –, que possui 1,9 mil hectares registrados em seu nome ou em sociedade dentro do território quilombola. Outro fazendeiro invasor é Antônio Jorge Godinho, presidente do PSL no Tocantins. De acordo com a sua declaração de bens à Justiça Eleitoral, ele é dono das Fazendas Terra Preta e São Carlos, no loteamento Caracol, em Santa Tereza do Tocantins, somando mais de 1,9 mil hectares dentro do território quilombola[3].

Durante os 15 anos em que se arrasta o processo de regularização do território da comunidade quilombola Barra da Aroeira no Incra, os invasores do território se movimentam rapidamente. Segundo levantamento da plataforma MapBiomas, os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) identificaram, entre janeiro e dezembro de 2019, o desmatamento de pouco mais de 602 hectares no território, fazendo de Barra da Aroeira o território quilombola mais desmatado naquele ano.[4]

O agronegócio está rodeando e invadindo o território quilombola. O desmatamento é intenso, sobretudo na porção norte do território. O fogo também tem sido utilizado como arma contra os quilombolas, como relatou Maria de Fátima Rodrigues, presidente da associação da comunidade, em 2020: “No ano passado construímos um galpão para reunir a comunidade, para debater e decidir nossas atividades juntos. Mas ele acabou incendiado, queimou tudo que tinha dentro. Ninguém foi preso, até hoje não sabemos quem tacou fogo ali”[5].

Notas

Caio de Freitas Paes. Quilombo mais desmatado em 2019 disputa território com políticos do PSL e do PR. De Olho nos Ruralistas, 11/06/2020.

 Paes, 2020.

 Paes, 2020.

Desmatamento dentro do território quilombola feito pelos invasores. Crédito: APA-TO.
Desmatamento dentro do território quilombola feito pelos invasores. Crédito: APA-TO.
Desmatamento dentro do território quilombola feito pelos invasores. Crédito: APA-TO.
Desmatamento dentro do território quilombola feito pelos invasores. Crédito: APA-TO.

Atualmente, a comunidade segue com a posse de um núcleo – onde a maioria das famílias residem – e de algumas localidades isoladas dentro do território – como a Baixa Boa, Felicíssimo e outras –, todas áreas com intensos conflitos com os invasores. A comunidade possui um Título Real de Concessão de Uso, de uma área de 1.000 ha, próxima ao núcleo.

Preparo da folha de piaçava para fazer o telhado do Chapéu de Palha da comunidade. Crédito: APA-TO.
Preparo da folha de piaçava para fazer o telhado do Chapéu de Palha da comunidade. Crédito: APA-TO.
Chapéu de Palha da comunidade. Crédito: APA-TO.
Chapéu de Palha da comunidade. Crédito: APA-TO.

No entanto, a insegurança das famílias está presente em todo território. Maria de Fátima afirma que:

Maria de Fátima Rodrigues.
Maria de Fátima Rodrigues. Crédito: APA-TO.

Continuam invadindo sempre, cada vez mais. Estamos aqui passando dentro desses mil hectares. Temos um documento de concessão de uso por vinte anos, podemos dizer que já tá quase vencendo, que foi em dois mil e seis, queremos o título definitivo… Hoje posso dizer que eu vivo muito preocupada, tem um desmatamento perto da cabeceira da Aroeira, que é o córrego que nós sempre utiliza, era onde a gente vai pegar baru, mangaba, e foram tudo destruído essas árvores frutíferas que a gente sempre usava para alimentação, e hoje possamos dizer  que nós não temos mais. Vão iniciar o plantio e sabemos que eles usam muito veneno, não queremos que isso acontecesse. Outra coisa que nós enfrentamos muito é esse problema de falta de água tratada, nós usava antigamente a água dos rios, hoje não podemos usar, estão poluídas. Os peixes já acabaram, e a tendência é acaba mais, nós temos apicultores aqui na comunidade, provavelmente daqui a uns seis meses, um ano, não vai ter mais, porque tá mesmo com esse veneno muito próximo, as abelhas deles pode acabar.[6]

E Isabel completa:

Esse desmatamento do Cerrado, aqui no território, vem trazendo bastante consequência para a comunidade. O primeiro passo é a fruta que se utilizava para alimentação, para geração de renda, desapareceu tudo, o pequi, a mangaba, o puçá, e assim várias. É que com a derrubada, destrói tudo. A seguir essa derrubada, todas essas sujeiras que são causadas pelo desmatamento vão tudo para dentro dos córregos. Os córregos só trazem poluição. Chegou a um ponto de gente adoecer por causa da grande derrubada, além de destruir mais de 10 mil pés de pequi, tudo que se tinha que era na época da colheita era uma geração de renda. E aí veio a poluição da água com veneno que joga na soja, essas coisas, aí veio tudo para água e causou uma grande consequência para nós que moramos lá ao lado dessas derrubadas. Estamos sofrendo falta da fruta, é a terra devastada e também as doenças que está trazendo. Lá em casa mesmo bastante gente deu provocação, deu coceira, deu diarreia. Tudo por causa disso.[7]

Mesmo vivendo em seu território desde aproximadamente 1870, a Comunidade Quilombola Barra da Aroeira ainda não conseguiu garantir os seus direitos territoriais. A maior parte de seu território foi invadido, muitas áreas foram desmatadas, os plantios de soja estão envenenando os rios e as pessoas e o processo de regularização territorial está paralisado. Mas as famílias continuam organizadas. Recentemente, elas elaboraram o Plano de Gestão Territorial, uma cartografia social onde escrevem parte da sua história e estruturam o “Programa de Produção e Monitoramento dos Sistemas de Produção Agropecuária e Manejo de Bens Naturais” [8].

Plano de Gestao da Comunidade Quilombola Barra de Aroeira
Plano de Gestao da Comunidade Quilombola Barra de Aroeira

Em debate público recente em que participaram, as lideranças da comunidade mostraram a força da organização política. Maria de Fátima enfatizou: “Com todo sofrimento que a gente passa, mas a gente não esmorece, estamos firmes na luta, não existe luta sem vitória, nem vitória sem luta”. E Isabel completou:

Uma vara sozinha é fácil de quebrar, e umas três ou quatro é mais difícil. Aí a gente espera que essas varinhas que estão reunida sejam uma força para que não venha quebrar esse feixinho de varas, e coisas aconteçam de ruim. A gente quer que a união traga a força para nós[9].

Os quilombolas de Barra da Aroeira seguem amparados pelos seus ancestrais em luta na defesa de seus direitos e contra o racismo institucional.
Notas

APA-TO, COEQTO, AJAQUITEBE e Associações, 2020.

Diana Aguiar, Eduardo Barcelos, Marcela Vecchione, Maurício Correia e Paulo Rogerio Gonçalves. Desmatamento no Cerrado e resistências nos territórios. In: Diana Aguiar e Helena Rodrigues (Orgs.). Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. Rio de Janeiro: Campanha em Defesa do Cerrado e ActionAid Brasil, 2020.

APA-TO, COEQTO, AJAQUITEBE e Associações, 2020.

Aguiar et al, 2020.

Paulo Rogerio Gonçalves é técnico da Associação Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins – APA-TO