O território, até então de uso comum, começou a sofrer transformações intensas com a regularização fundiária realizada no final da ditadura militar. Por se tratar de uma terra da União, que está dentro do limite de 100 km da Rodovia Federal BR 153, em 1984, o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT) arrecadou a área que corresponde a 17.735 hectares. Mas titulou apenas 5.779 hectares em forma de lotes individualizados, restando 11.956,0196 hectares de terras da União, ocupados pelas famílias que não tiveram acesso ao título. O processo de arrecadação da área ocorreu à revelia de grande parte das populações que ali viviam e trabalhavam.
As muitas famílias que não tiveram as terras tituladas ficaram vulneráveis ao ambicioso plano de grilagem de terras iniciado em 1992 pelo catarinense Emilio Binotto e seus familiares. E mesmo no caso das famílias que tiveram suas áreas regularizadas, a titulação, que poderia ser uma forma de garantia da permanência das famílias na terra, não só não garantiu como, ao contrário, facilitou ao grileiro pressionar individualmente cada proprietário a vender os seus lotes. Isso significou a chegada do desassossego para as famílias, que relatam que quando os Binotto apareceram na região, já trouxeram consigo várias máquinas para trabalhar a terra, e logo que conseguiram expulsar o primeiro morador, começaram a desmatar para plantar soja.
A partir de então, os moradores titulados começaram a ser pressionados, inclusive com uso da violência, como queima de casas e assassinato de animais. Amedrontadas, muitas famílias venderam suas terras para o grileiro, que, com a posse de alguns títulos, cercou outras áreas públicas que eram ocupadas por posseiros antigos. O desassossego das famílias não está relacionado apenas à violência física, patrimonial e moral, mas principalmente com a violência cultural, que é praticada contra os seus modos de vida. Desde a chegada desse grupo, as comunidades tiveram seus espaços sagrados destruídos, interferidos de forma violenta pelo plantio da soja, como por exemplo os oitos cemitérios.
No ano de 2004, os Binotto requereram junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a regularização de sete áreas, cada uma em nome de pessoas diferentes da família. A tática usada na grilagem foi a fragmentação dos 11 mil hectares de terra que o GETAT havia deixado de titular às famílias camponesas. Sem sucesso no primeiro pedido, em 2010, logo após a criação do Programa Terra Legal e com as novas leis de regularização fundiária, os Binotto voltaram a requerer a regularização das terras griladas. Dessa vez, fragmentando os 11 mil hectares em 14 lotes para pessoas ligadas à família, ampliando o consórcio da grilagem.
Em 2007, as famílias camponesas registraram na Ouvidoria Agrária Nacional (OAN) a primeira denúncia referente à grilagem, desmatamento e ameaças por parte dos Binotto. Em 2008, depois de vistoriar a Tauá, o INCRA abriu processo administrativo para regularização fundiária dos posseiros tradicionais e criação de assentamentos. Mas, somente em 2015, após muita pressão por parte das famílias e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Araguaia-Tocantins, com denúncias junto ao Ministério Público Federal (MPF), Ouvidoria Agrária Nacional e Regional, Superintendência Nacional de Regularização Fundiária na Amazônia Legal (SRFA-9) – ligada ao Programa Terra Legal – e à Advocacia Geral da União (AGU), é que todos os requerimentos de regularização fundiária dos grileiros foram indeferidos. As 14 áreas reivindicadas pelos grileiros foram desafetadas e disponibilizadas para regularização fundiária dos posseiros tradicionais e implementação de projeto de assentamento para famílias ocupantes.
No entanto, em 2016, após todas as ações e mobilizações que comprovavam a grilagem de terra, o juiz da Comarca de Goiatins expediu liminar de despejo contra as famílias de posseiros e ocupantes. Em 2019, uma Decisão da Justiça Federal determinou que o INCRA desse prosseguimento ao processo de regularização fundiária de 4 famílias de posseiros , mas em outra ação movida pelo grileiro contra as famílias ocupantes, a Justiça reconheceu o direito de posse de uma das 14 áreas aos grileiros, sendo esta uma das áreas de assentamento das famílias ocupantes. Concretamente, houve avanços nos processos administrativos e judiciais em favor das comunidades, mas as decisões tiveram pouco efeito no sentido de garantir a segurança das famílias e de impedir a destruição ambiental na Tauá. Atualmente, vivem na Tauá mais de 100 famílias, sendo camponeses posseiros que reivindicam regularização fundiária (20 famílias); ocupantes que reivindicam reforma agrária (60 famílias); e camponeses tradicionais com terras tituladas (mais de 30 famílias).
A grilagem de terras por Emilio Binotto na região dissemina medo e expulsão de moradores e tem acelerado a destruição do Cerrado para a implantação de lavouras de soja, milho e pastagens para gado. Desde a invasão dos Binotto, as famílias da Tauá vivem uma sistemática tentativa de expulsão, ora é a violência através de tiroteios contra as casas e animais dos moradores; ora é o envenenamento dos córregos (fonte de águas que abastecem as casas); e outrora são desmatamentos seguidos de incêndios que destroem casas, roças, equipamentos de trabalho e chapadas.[1]
Notas
Casa é destruída por fogo em conflitos na Gleba Tauá. G1.; Websérie (R)Existências no Cerrado: Comunidade Tauá – Tocantins. CESE, 13/07/2020.
Desde a sua chegada nesses sertões, os Binotto já desmataram cerca de 11 mil hectares. Para além das áreas de Cerrado já devastadas para dar lugar a cultivos de soja, milho e pastagem, a partir de 2015, com o arrendamento das terras para grandes grupos produtores de soja, como, por exemplo, o grupo Santa Bárbara, o grileiro planejou o desmatamento de uma área equivalente a mil hectares de terras. As famílias camponesas estão ficando ilhadas e encurraladas diante do crescente desmatamento e da violência exercida pelos funcionários (pistoleiros) do sojeiro-grileiro Binotto:
Antes eu andava por essas terras e sabia exatamente onde ficava cada grota d’água, cada caminho para as casas das famílias amigas. Hoje em dia, com esse desmatamento, eu não reconheço mais nada, não sei mais caminhar por aí”, denuncia dona Raimunda, uma das lideranças do território.
Muitas denúncias foram registradas nos órgãos de fiscalização ambiental, como o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), Polícia Militar Ambiental e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Em muitos casos, o desmatamento e as queimadas destroem roças e quintais produtivos das famílias, inviabilizando seus cultivos e a geração de renda. Segundo Valdineiz Pereira, liderança da comunidade,
o grileiro desde 2018, após ser multado, tem realizado o desmatamento por etapas: primeiro, usa o correntão para retirar as árvores maiores e vender a madeira (pequi, oiti, bacuri, sucupira e outras). Depois, já em 2019, passou o trator retirando as árvores menores, e no mês de setembro incendiou as áreas desmatadas ilegalmente e as roças de muitas famílias ocupantes e posseiras. Em 2020, no mês de julho, o grileiro voltou a desmatar novas áreas, e em setembro incinerou o resto da madeira que sobrava no local.
O desmatamento e os incêndios têm por finalidade abrir novas áreas para comprovar posse da terra e para implementar novos plantios de soja e milho.
As famílias camponesas seguem resistindo e lutando pela terra, produzindo alimentos diversificados, apesar de estarem cercadas por lavouras de soja e confinadas em pequenas áreas de terra inferior a 5 hectares. Elas desenvolvem a produção de alimentos por meio das roças de toco e de quintais produtivos. Nas roças de toco, encontra-se o cultivo de mandioca, milho, feijão trepa-pau, fava, abóbora, arroz, melancia, dentre outros alimentos.
Dos quintais produtivos, que são as pequenas áreas ao redor da moradia, as mulheres conseguem alimentar e cuidar da família por meio das hortas, criação de galinhas, suínos, patos, e cultivo de ervas medicinais, frutos e mandioca; e gerar a renda com a comercialização da galinha e do ovo caipira, a venda da massa de puba e do polvilho da mandioca. É também o lugar onde estão as fábricas artesanais de farinha de mandioca e de beneficiamento do arroz através dos pilões de madeira. Os quintais das famílias têm aproximadamente 2,5 hectares e é nessa pequena área que produzem o sustento da família.
Valéria Pereira Santos é Articuladora da Comissão Pastoral da Terra no Cerrado
Vinícius Gomes de Aguiar é Professor e pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Saberes e Práticas Agroecológicas – NEUZA/UFT/UFNT
Dernival Venâncio Ramos Junior é Professor e pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Saberes e Práticas Agroecológicas – NEUZA/UFT/UFNT
Pedro Antônio Ribeiro é Agente da Comissão Pastoral da Terra Regional Araguaia -Tocantins
Valdineiz Pereira dos Santos é Liderança da Comunidade Tauá