No mês de setembro de 2020 um incêndio de grandes proporções devastou, por dias, uma área conhecida como Mata do Mamão, no interior da Ilha do Bananal, no estado do Tocantins. Com área de cerca de 19 mil km², a Ilha do Bananal é considerada a maior ilha fluvial do mundo. Está situada entre dois grandes rios – o Javaé e o Araguaia –, nas divisas do estado do Tocantins com Goiás e Mato Grosso e integra os municípios tocantinenses de Pium, Caseara, Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão e Marianópolis. Compõe a planície do Araguaia, uma das maiores áreas continentais alagadas do planeta, no Cerrado em sua transição para a Amazônia.

Incêndio atinge a Ilha do Bananal, no Tocantins em 2020.
Incêndio atinge a Ilha do Bananal, no Tocantins em 2020. Crédito: Assessoria de Comunicação – CBMTO.

A ilha é uma das mais importantes áreas de conservação do Brasil, sendo que uma parte dela é demarcada como Parque Nacional e a outra como diferentes terras indígenas. Abriga a Terra Indígena Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna, que possui portaria declaratória e aguarda homologação, e as Terras Indígenas (TI) Inawebohona e Parque do Araguaia, ambas já demarcadas e homologadas, e que possuem uma população aproximada de 3.500 indígenas dos povos Javaé e Karajá, e 42 indígenas do povo Avá-Canoeiro.

Além destes povos, vivem em isolamento voluntário um grupo do povo indígena Avá-Canoeiro. Sua presença foi confirmada durante um voo de helicóptero por um brigadista que atuava na região combatendo o incêndio florestal no dia 9 de outubro de 2019, e que relatou ter visto oito indígenas de uma etnia não identificada, sendo seis adultos e duas crianças[1]. A Mata do Mamão é conhecida como o último refúgio desse grupo de indígenas em isolamento voluntário e foi, ao mesmo tempo, a zona mais afetada pelos incêndios de 2020.

A área engloba a região sul da TI Inawebohona, e a Terra Indígena Parque do Araguaia. Para resguardar a vida e a integridade física e cultural deste povo, a Justiça Federal, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), determinou, por meio de uma Ação Civil Pública, que fosse restrito o ingresso e trânsito de terceiros no acesso à Mata do Mamão, determinando que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) adotassem medidas para localizar e qualificar os registros da existência dos Avá-Canoeiro na Mata do Mamão e identificar as principais ameaças ao grupo, assim como a elaboração de um Plano de Monitoramento, com ações que possam proteger os isolados[2].

Reprodução de vídeo gravado por brigadista no dia 20 de setembro de 2020 mostrando incêndio na Mata do Mamão.
Reprodução de vídeo gravado por brigadista no dia 20 de setembro de 2020 mostrando incêndio na Mata do Mamão.
Notas

Relatos do brigadista Sidey /áudios divulgados pelo Whatsapp: Pegadas que seriam de indígenas isolados são encontradas na Ilha do Bananal. G1 Tocantins, 23/10/2019.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL Órgão julgador: 2ª Vara Federal Cível da SJTO Número: 1005738-21.2019.4.01.4300.
As ameaças ao território indígena e à área de preservação ambiental do Parque Nacional do Araguaia são inúmeras. Dentre elas, as secas dos rios Formoso e Javaé, causadas, sobretudo, pelo agronegócio irrigado de arroz na região vizinha[3] à ilha e a presença de criadores de bovinos dentro do local, que ameaçam a integridade física e cultural dos povos, com arrendamentos de pasto e instalações de retiros[4] com a presença de vaqueiros não indígenas.
Notas
Lugares onde os vaqueiros cuidam do gado.

Bombas gigantes capturam água para agronegócio irrigado de arroz, causando seca na Bacia do Rio Formoso, em 2020, no Tocantins.

Segundo a Agência de Defesa Agropecuária do Tocantins (ADAPEC), a Ilha do Bananal tem cerca de 100 mil cabeças de gado, com 344 retiros[5]. As queimadas dentro da ilha se intensificam todos os anos no período seco com estiagem, entre os meses de agosto e novembro, período em que os arrendatários na região fazem a renovação dos pastos com a utilização do fogo. Além do manejo do fogo na estação seca não ser recomendado pelo risco de incêndios, a prática de arrendamento dentro do território indígena é ilegal, conforme a CF de 1988[6], que declara que: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. […] As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.

Esse conflito e a invasão dentro da Ilha do Bananal com os criadores de gado têm ocorrido desde 1960, com as instalações de fazendas nas margens do rio Javaé e Formoso. Nas décadas seguintes, em especial nos anos 1980 e 1990, o número de moradores não indígenas cresceu muito dentro da ilha. Assim, no final dos anos 1990 um grupo de lideranças do povo Javaé solicitou ao MPF a retirado do gado e das famílias que estavam dentro do território indígena[7]. Mesmo com a retirada dos invasores, dentro do território indígena a prática de arrendamento de pasto continua.

Através de um termo de ajustamento de conduta do MPF-TO, desde 2009[8] foi mediado junto com a Funai um acordo que permitiu o retorno do gado das grandes fazendas à área, sob o controle dos Javaé. As lideranças Javaé constituíram uma organização – Conselho das Organizações Indígenas Javaé da Ilha do Bananal (Conjaba) e a Associação Barreira Branca – para negociar com os fazendeiros o arrendamento de pasto. A associação CONJABA passa a liderar as negociações para a entrada do gado. Consequentemente, os conflitos dentro do território se agravam, principalmente com a presença de não índios e a depredação do meio ambiente, assim como a divisão dos recursos para as aldeias.

Além disso, o risco de descontrole é sempre iminente e as consequências são graves para o meio ambiente e para os povos que habitam dentro e no entorno da ilha. Dessa forma, todos os anos as queimadas chegam à Mata do Mamão, tomando grandes proporções.

Notas
Capítulo VIII- DOS ÍNDIOS (ARTS. 231 E 232)

Patrícia de Mendonça Rodrigues. A invasão e a desocupação da Ilha do Bananal. In: Instituto Socioambiental (ISA). Povos Indígenas no Brasil.

Rodrigues – ISA.
Fazenda dentro do território indígena.
Fazenda dentro do território indígena. Crédito: Arquivo do CIMI GOTO.
Aldeia Canoanã povo Javaé em 27/11/2020.
Aldeia Canoanã povo Javaé em 27/11/2020. Crédito: Davi Avá-Canoeiro

Do início de 2020 até outubro, a TI Parque do Araguaia teve 8.792 focos de incêndio, de acordo com dados de queimadas ativas da Nasa, acessados por meio da plataforma da Global Forest Watch, sendo a segunda TI mais afetada no país no ano[9]. As outras TIs da ilha também foram bastante afetadas pelos incêndios, em especial nos meses habitualmente mais secos do ano

O INPE registrou 1.255 focos de incêndio nas terras indígenas da Ilha de Bananal em 2020. Crédito: Mapa Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Apesar de tantas ameaças, os povos indígenas da Ilha do Bananal praticam seus rituais, cantos, falam sua língua materna e cultivam a preservação da cultura do povo Javaé/Karajá e Avá-Canoeiro na vida cotidiana das aldeias.

Povo Javaé.
Povo Javaé. Crédito: Acervo CIMI GO/TO.

O povo Avá-Canoeiro luta ainda pela demarcação do seu território tradicional Taego Awá, que está declarado desde maio de 2016. Eles esperam a desintrusão do território pelos órgãos competentes. As lideranças Avá-Canoeiro cobram também da Justiça a proteção dos seus parentes que vivem no interior da Mata do Mamão em situação de povos isolados, reafirmando o direito de que eles permaneçam sem contato com a sociedade, como nos relata Kamutaya Avá da Silva, em fevereiro de 2021:

Eu pertenço ao povo Avá-Canoeiro e venho em nome do meu povo falar da nossa preocupação em relação aos nossos parentes da mata do mamão que estão largados à própria sorte, precisando de proteção por lá. Todo ano a mata do mamão pega fogo, hoje nós não sabemos como está a situação dos nossos parentes da mata do mamão, porque eles estão em situação de vulnerabilidade, situação de refúgio e isolamento, e lá além da ameaça das queimadas, temos o risco da construção da Transbananal, que é próximo também da mata do mamão, e com a construção da estrada trará novos riscos aos nossos parentes da mata do mamão, assim como o arrendamento do gado próximo à mata, porque se tem o gado nós sabemos exatamente quais são os riscos que o gado pode trazer em relação aos povos que estão em isolamento voluntário, que vivem isolados que preferem manter seu modo de vida, então eu peço que as pessoas façam algo, principalmente a Funai que cumpra com seu papel de proteger nossos parentes contra o fogo que acontece anualmente, contra o arrendamento do gado, contra pescadores e caçadores ilegais, e a construção da Transbananal.

Povo Avá-Canoeiro luta pela TI Taego Ãwa.
Povo Avá-Canoeiro luta pela TI Taego Ãwa. Crédito: Filme longa-metragem Taego Ãwa (2016). Realização: Marcela Borela e Henrique Borela. Imagem: Carlos Cipriano
A luta dos povos indígenas é permanente na defesa e proteção dos direitos e da preservação do território. Os povos da Ilha do Bananal se juntam às vozes das comunidades tradicionais para a regularização fundiária dos territórios, condição essencial para sua integridade cultural e garantia da reprodução de seus modos de vida, além de ser a melhor maneira de conter a expansão do desmatamento.

Eliane Franco Martins é do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Regional Goiás – Tocantins