O território que compreende a Terra Indígena (TI) Kadiwéu está localizado no estado do Mato Grosso do Sul (MS), município de Porto Murtinho, a 60 km da cidade de Bonito e a 425 km da capital Campo Grande. A TI possui 539.000 hectares, onde vivem aproximadamente 2 mil indígenas do povo Kadiwéu. Dentro do território vivem também indígenas dos povos Kinikinau, Terena e Chamacoco. Está também localizado junto à bacia do baixo rio Paraguai e possui, em sua extensão, a sobreposição de Cerrado e Pantanal[1].
Registros da presença dos Kadiwéu no território são muito antigos, sendo os primeiros ainda de meados do século XVI advindos de relatos de expedições europeias que buscavam metais preciosos no interior do país. Os registros continuam e se intensificam nos séculos subsequentes, como por exemplo no XVIII com o estabelecimento de fortes militares portugueses e espanhóis na região. Os Kadiwéu são conhecidos e respeitados no estado do Mato Grosso do Sul pela participação fundamental na Guerra do Paraguai, a partir da qual os indígenas afirmam terem recebido termo de proteção e “demarcação” das mãos do próprio Dom Pedro II, ainda que este não tenha garantido as terras prometidas[2].
Grande parte de seu território tem, hoje, a demarcação consolidada, recebendo o primeiro reconhecimento oficial em 1900. Em 1931 foram ratificados seus limites, mas os problemas fundiários jamais deixaram em paz os descendentes dos guaicurus, como também são conhecidos. São inúmeros os registros de invasão, grilagem e conflitos. Nos atos finais de demarcação, que só ocorreram em 1981, o conflito foi tão intenso que acabou ficando de fora do perímetro derradeiro da TI uma parte do território originário chamado Xatelodo.
Nos anos 1950, os posseiros e grileiros já estavam na casa dos milhares e, nos anos 1980, foram aumentando sobretudo com incentivo do próprio Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Registros mais atuais dão conta de que em meados dos anos 2000 mais de 100.000 mil hectares da Terra Indígena Kadiwéu estavam invadidas. Mesmo depois das retomadas e das lutas de recuperação por parte dos indígenas, pelo menos cerca de 80.000 permanecem nesta situação. Ou seja, a luta contra madeireiros, arrendatários e fazendeiros segue viva e, segundo os Kadiwéu, os invasores têm usado diversas táticas de ocupação, como, por exemplo, a expansão da pecuária com derrubada de mato e, sobretudo, as queimadas.
Notas
Instituto Socioambiental (ISA). Terra Indígena Kadiwéu. In: Terras Indígenas no Brasil.
Caio de Freitas Paes. A história e o mito dos índios cavaleiros do Pantanal, ‘decisivos’ na Guerra do Paraguai. BBC News Brasil, 07/12/2019.
As queimadas no Pantanal crescem vertiginosamente. Já foram consumidos 4 milhões de hectares, sendo 2,9 milhões apenas em 2020 e 1,165 milhão apenas no MS. Esta extensão, que representa 21% da área total do bioma (de acordo com os parâmetros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), é equivalente a 20 vezes o tamanho da cidade de São Paulo[3]. Além de serras, parques e Áreas de Preservação Permanente, os incêndios chegaram também em comunidades ribeirinhas e, de maneira especialmente trágica, às terras indígenas localizadas na região dos municípios de Corumbá, Porto Murtinho, Miranda e Aquidauana. Dentre elas, a mais afetada foi a Terra Indígena Kadiwéu.
O estrago não é de agora. Em 2019 – ano em que houve um aumento de 88% em focos de incêndio nas Terras Indígenas do Brasil – a TI Kadiwéu foi a segunda mais afetada, com mais de 613 focos[4].
Notas
Duda Menegassi. Fogo já atingiu mais de um quinto de todo Pantanal. O Eco, 24/09/2020.
Renato Santana e Tiago Miotto. Focos de incêndio em terras indígenas aumentaram 88% em 2019. CIMI, 10/09/2019.
Gilberto Kadiwéu relata que a comunidade está estarrecida com o quanto já queimou:
são extensões de mato inteiras, plantas, raízes e árvores, nossa medicina, muita fonte de cultura de nosso povo vai junto com esta natureza, sem pensar nos bichos que acho que muitos nem existem mais.
Todo ano é a mesma coisa. Montamos uma brigada aqui na comunidade, jovens e pessoas que querem ajudar, querem acabar com o incêndio. Conseguimos um certo apoio do IBAMA, mas só conseguimos este apoio naqueles meses onde o fogo já está chegando ou já está ardendo, naquele período que não tem muito o que fazer. Estamos sempre perdendo a batalha, pra apagar quando ele chega é sempre mais difícil. Nosso clamor é que possamos ter um apoio permanente, que pense em como fazer a contenção antes do fogo começar a chegar, monitorar os limites, pensar, agir, nos meses onde o fogo não vem ainda devastando tudo.
É mais do que sabido que estes incêndios que estão assolando a Terra Indígena Kadiwéu e demais terras e povos no MS, em sua maior parte, são criminosos e intencionais. Há poucos meses, o governo do estado divulgou o balanço da Operação Focus que fiscalizou e investigou incêndios criminosos no Pantanal. Apenas da aplicação de multas foram arrecadados cerca de R$ 35 milhões. Foram fiscalizadas 40 propriedades e, destas, 19 estavam com focos de queimadas ativos, sendo que 3 pessoas foram presas em flagrante ateando fogo na vegetação[5].
O fogo que vem acompanhando o leito do rio Paraguai vem deixando na natureza uma cicatriz de queima. Mas é impossível mensurar o tamanho das cicatrizes culturais e territoriais que ficarão para as comunidades indígenas do estado, em especial para os Kadiwéu, se a situação não for urgentemente contida.
Notas
Karina Campos. Multas por crimes ambientais no Pantanal já somam R$ 35 milhões na Operação Focus. Midiamax, 15/10/2020.
Matias Benno Rempel é do CIMI Regional Mato Grosso do Sul