Fonte: El País – Guillermo Altares | Foto: Evan Collis/DFES Handout / EFE –
Internacional. Trata-se de um “ato ilícito ou arbitrário” que causa “danos graves e duradouros ao meio ambiente”
O ecocídio, uma nova tipificação de crime contra o conjunto da humanidade, mas sobretudo contra o planeta, já tem uma definição jurídica, criada por uma comissão internacional de 12 juristas impulsionados pela sociedade civil. “Para os efeitos do presente Estatuto, entender-se-á por ecocídio qualquer ato ilícito ou arbitrário perpetrado com consciência de que existem grandes probabilidades de que cause danos graves que sejam extensos ou duradouros ao meio ambiente”, afirma a definição, apresentada nesta terça-feira, segundo uma tradução oferecida pela própria comissão. A ideia é que essa tipificação penal seja incorporada, como um quinto crime, ao Estatuto de Roma, que orienta o funcionamento do Tribunal Penal Internacional (TPI).
A definição de ecocídio, impulsionada pela campanha Stop Ecocide, pretende ter efeitos concretos sobre a legislação internacional, mas também sobre a dos próprios países. O painel internacional de especialistas começou a trabalhar em janeiro. A definição criada por eles agora será discutida publicamente para alcançar um texto definitivo, a ser apresentado aos países signatários do Estatuto de Roma. Jojo Mehta, presidenta da Fundação Stop Ecocide, disse em entrevista coletiva transmitida por videoconferência que o painel havia agido “com um sentimento de urgência” e que já contavam com o apoio de vários países, “entre eles a França, a Bélgica e a Espanha”, além do papa Francisco.
O estatuto do TPI, ratificado até o momento por 123 países, contempla atualmente quatro delitos: genocídio (uma palavra cunhada pelo jurista polonês Rafael Lemkin depois da II Guerra Mundial), crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão (o uso da força armada por um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou a independência política de outro). Este último delito foi definido em 2010 e introduzido no Estatuto de Roma em 2018, embora só seja válido para os quase 40 países que o reconheceram. O crime de ecocídio poderia seguir um caminho semelhante. Os promotores da campanha, assim como os especialistas que elaboraram a definição, acreditam que haja uma possibilidade real de ele ser incorporado ao corpo jurídico internacional, à medida que os efeitos da mudança climática vão se tornando cada vez mais evidentes e devastadores.
Cada uma das palavras da definição foi cuidadosamente medida e debatida, como explicou o jurista e escritor Philippe Sands, copresidente da comissão. O problema que os juristas encontraram foi que, se escolhessem uma definição ampla demais, seria muito difícil que os países signatários do Estatuto de Roma a apoiassem. Por outro lado, se escolhessem uma definição muito limitada, havia mais chances de ser adotada, mas seria quase impossível que qualquer desastre ambiental pudesse ser enquadrado como ecocídio.
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Por esse motivo, foram introduzidas tantas condicionais —“ato ilícito ou arbitrário”, “perpetrado com a consciência”, “danos graves”, “extensos” e “duradouros”. Em um documento divulgado pela campanha Stop Ecocide, explica-se, por exemplo, que “há atividades que são legais, socialmente benéficas e operadas responsavelmente para minimizar o impacto ambiental, mas que causam (ou podem causar) danos ambientais graves e generalizados ou de longo prazo”. Em outras palavras, muitos ataques ao meio ambiente são perfeitamente legais, e para se considerar ecocídio é preciso que se trate de um ato “ilícito” ou “arbitrário”.
Sands, autor de East west street, um livro sobre o nascimento dos crimes de genocídio e de lesa-humanidade, na década de 1940, explicou que a definição não cita nenhum delito concreto anterior como exemplo e que tampouco pretende buscar a retroatividade. A ideia é que os países que aceitarem sua inclusão no TPI o incorporem também às suas próprias legislações. Sands esclareceu que não poderão ser perseguidos nem países nem grandes companhias multinacionais, apenas pessoas concretas dentro de organizações ou Estados.
A palavra foi inspirada pelo conceito de genocídio, o desejo de destruir um grupo humano inteiro, juntando a raiz grega oikos, que significa casa (embora tenha passado a designar o hábitat), e a latina cídio, que significa matar. Diversos ativistas, assim como o primeiro-ministro sueco Olof Palme, assassinado em 1986, começaram a utilizar o conceito na década de 1970 para recriminar os Estados Unidos pelo uso do desfolhante agente laranja, durante a guerra do Vietnã, para destruir selvas asiáticas e expor esconderijos inimigos. Mas foi a ativista Polly Higgins, que morreu em 2019 aos 50 anos, que trabalhou para que esse conceito fosse incorporado ao corpus jurídico reconhecido pelas Nações Unidas. Copresidido por Sands e pela jurista senegalesa Dior Fall Sow, o painel de especialistas foi integrado também pela norte-americana Kate Mackintosh, o britânico Richard J. Rogers, o samoano Tuiloma Neroni Slade (ex-juiz do TPI), a bengalesa Syeda Rizwana Hasan, a francesa Valérie Cabanes e o hispano-chileno Rodrigo Lledó, diretor da Fundação Internacional Baltasar Garzón.
O texto completo da definição pretende também incorporar ao preâmbulo do Estatuto de Roma a seguinte frase: “Preocupados com a ameaça constante a que o meio ambiente está submetido como resultado da grave destruição e degradação que põem em sério perigo os sistemas naturais e humanos em todo mundo…”. Posteriormente, esclarece assim os termos da definição: “Entender-se-á por ‘arbitrário’ o ato de imprudência temerária em relação a danos que seriam manifestamente excessivos em relação à vantagem social ou econômica que se preveja”; “Entender-se-á por ‘grave’ o dano que cause mudanças muito adversas, perturbações ou danos notórios para qualquer elemento do meio ambiente, incluídos os efeitos sérios para a vida humana ou os recursos naturais, culturais ou econômicos”; “Entender-se-á por ‘extenso’ o dano que vá além de uma zona geográfica limitada, transborde as fronteiras estatais ou afete a totalidade de um ecossistema ou uma espécie ou a um grande número de seres humanos”; “Entender-se-á por ‘duradouro’ o dano irreversível ou que não se possa reparar mediante a regeneração natural em um prazo razoável”; “Entender-se-á por ‘meio ambiente’ a Terra, sua biosfera, criosfera, litosfera, hidrosfera e atmosfera, assim como o espaço ultraterrestre”.
Perguntada sobre o tempo que pode transcorrer até que o crime de ecocídio seja incorporado à legislação internacional, Jojo Mehta afirmou que serão necessários os dois terços dos signatários do TPI, mas não quis especular sobre prazos concretos. Dior Fall Sow, jurista da ONU e também integrante do painel, assinalou por sua vez: “Pessoalmente, tenho a esperança de que ocorra mais rapidamente do que com o crime de agressão. Crimes desse tipo são cada vez mais importantes”.
“Há na justiça internacional alguns momentos em que ocorrem grandes mudanças”, disse Philippe Sands, citando o caso do genocídio após a II Guerra Mundial. “Foi assim também em 1998, quando foi aprovado o Estatuto de Roma do TPI, Slobodan Milosevic foi condenado por um tribunal especial, e o ex-ditador chileno Augusto Pinochet foi detido em Londres. Eu me pergunto se estamos vivendo um desses momentos, a combinação da pandemia, que nos demonstra que não podemos controlar tudo, assim como a sensação de que se aproxima uma grande catástrofe ambiental. Vivemos um momento no qual se impõe a sensação de que devemos fazer algo.”