Maranhão

CERRADO

A comunidade luta é toda vida e a vida toda vai continuar lutando, vamos lutar até o fim.

(Gilberto, quilombola de Cocalinho/MA)

No leste maranhense, a 500 km da capital São Luís e a 44 km da sede do município de Parnarama (MA), está localizado o Território Quilombola de Cocalinho, na divisa com o estado do Piauí. Ali vivem 180 famílias, autodeclaradas quilombolas e reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares em 2014. O território engloba também o quilombo Guerreiro com 80 famílias, compartilhando o uso coletivo da terra. De acordo com os relatos das famílias quilombolas, o processo de formação territorial remonta ao final do século XVIII e início do século XIX, com a vinda de pessoas fugindo da seca do Ceará e Piauí, chegando ao Maranhão e se instalando nessas áreas.

Depois de transitar pelo território tendo de pagar renda a fazendeiro e enfrentando escassez de água, se instalaram nas terras que hoje formam as comunidades quilombolas de Cocalinho e Guerreiro e que eram mais amplamente conectadas às comunidades quilombolas de Tanque da Rodagem e São João, no município vizinho de Matões, como parte de um grande território coletivo quilombola. Zé de Emília, da família dos Cândidos, foi o primeiro a chegar nesse lugar, em 1916. A origem do nome Cocalinho vem das palmeiras de babaçu. Foi junto delas que os quilombolas formaram seus troncos familiares, fincaram suas raízes e se constituíram enquanto território, chão sagrado, rico em biodiversidade e em águas alimentadas pelas bacias hidrográficas dos rios Parnaíba e Itapecuru.

Invasões

Nessa região de área de transição entre Cerrado e Amazônia e de muitas terras devolutas, desde a década de 1980, a chegada de fazendeiros criadores de gado impulsionou os processos de grilagem, que alteraram a conformação territorial existente, gerando intensos conflitos com as comunidades quilombolas. Com as grilagens, o território contínuo usado pelas famílias de Cocalinho, Guerreiro, Tanque da Rodagem e São João passa a ser delimitado e cercado pelo agronegócio, cortado por fazendas, quebrando sua unificação e comprometendo a liberdade de deslocamento entre as comunidades e o acesso às áreas comuns usadas para pesca, extrativismo e agricultura. Isso reduziu as condições de permanência no território.

Com isso, o território se tornou espaço de resistência e conservação da sociobiodiversidade, das águas e das matas, onde os quilombolas reproduzem seus modos de vida, a cultura e os cultivos.

As famílias relatam que, desde 1982, chegaram pernambucanos em uma grande área chamada de Fazenda Crimeia[1], onde viviam muitas famílias. A partir de então, os processos de expulsão nos territórios se intensificaram, como ocorreu com as comunidades de Brejinho, Bebedouro e Cabeceira, expropriadas do local onde viviam – que, mais tarde, passou a ser a área da fazenda Normasa. Dentro dessa fazenda ainda estão enterradas pessoas das famílias que foram expulsas. Além da criação de gado, a comunidade enfrenta invasões para a plantação de soja e eucalipto.

Outro processo de grilagem se deu pelos ditos proprietários da fazenda Canabrava I, pelo menos desde 2002[2], com uma área de 8.194 hectares. Essa mesma fazenda, posteriormente, foi vendida para o grupo Suzano Papel e Celulose S/A, pelo valor de R$ 9.833.130,00, no ano de 2009. A partir de então, ocorre o aumento dos crimes ambientais e de violações de direitos, como no cemitério dos ancestrais, invadido pela empresa que ali plantou eucalipto, o que levou a comunidade a organizar outro lugar para sepultar os parentes.

Além disso, à medida que as carvoarias se instalam na região, mais áreas de cerrado passaram a ser devastadas com correntão para plantio da monocultura do eucalipto. Com toda essa devastação, as comunidades são forçadas a andar mais até a chapada onde coletam os frutos do Cerrado, as cascas das plantas nativas, as sementes e as folhas, que são usadas para o preparo dos remédios pelas mulheres, que são as guardiãs desses saberes ancestrais, como nos fala a quilombola Maria da Cruz, do pertencimento ao território:

Nasci e me criei aqui no Cocalinho e daqui não vou sair, a minha família foi expulsa das Cabeceiras, é o mesmo território.

Notas
É necessária e urgente uma pesquisa detalhada sobre a cadeia dominial das fazendas que se instalaram no território quilombola, a fim de melhor documentar os processos de grilagem. As famílias contam que pagavam foro (uma espécie de imposto da renda da terra) aos pretensos proprietários da fazenda Crimeia, que posteriormente foi sendo retalhada e vendida.
Nos registros do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino – CEDOC, da Comissão Pastoral da Terra, há informação de grilagem e conflitos envolvendo a fazenda Canabrava no Jornal Pequeno, dos dias 14 e 15/05/2002.

As mulheres enfrentam um longo caminho até chegar aos babaçuais presos pelos plantios de eucaliptos da empresa Suzano. Após a coleta, percorrem grandes ladeiras, carregando o coco babaçu até a estrada. A partir daí, pagam em torno de 150 a 200 reais para transportá-lo até suas casas. Depois, elas se juntam em mutirão para o beneficiamento do coco: a quebra no machado, a extração do azeite e o fubá, do qual fazem bolos, biscoitos e mingau para alimentação das famílias. Parte dessa produção, juntamente com outros alimentos cultivados e extraídos das chapadas de cerrado, segue para comercialização em feiras livres e pontos de venda na cidade de Parnarama. Esses espaços de comercialização foram fortemente impactados pela pandemia do coronavírus (COVID 19), agravando dificuldade de obtenção de renda.

Com o avanço da fronteira agrícola do Matopiba[3], aprofundaram-se os impactos socioambientais, especialmente com chegada de produtores gaúchos, paulistas e paraguaios, que investem na produção de soja. Nesse contexto, aumentaram os desmatamentos, os incêndios e o uso de agrotóxicos, que envenenam a terra, as águas, as plantas, os alimentos e os animais.

Rastro de destruição

Desde 2009, tem sido recorrente a destruição da sociobiodiversidade pelo fogo do agronegócio que avança das monoculturas de eucaliptos e pastagens de pecuária em direção ao território. A recorrência de incêndios em curto prazo desmata as áreas de chapada, inviabilizando a recuperação das pastagens naturais e de diversas árvores nativas, que alimentam os animais e as comunidades tradicionais.

Há anos, esses ataques contra as comunidades quilombolas Cocalinho e Guerreiro, em Parnarama, Tanque da Rodagem e São João, em Matões, vêm sendo denunciados. Em novembro de 2014, a Comissão Pastoral da Terra/ MA, tornou pública, através de uma nota, as ações criminosas da empresa Suzano Papel e Celulose S/A. O contrafogo usado pela empresa para se proteger dos incêndios muitas vezes avança sobre as plantações camponesas[4].

No contexto da pandemia, o agronegócio não entrou em quarentena. Em 2020, novos desmatamentos seguidos de incêndio provocado pela fazenda Canabrava, arrendada desde 2019 pela empresa Suzano Celulose para plantação de soja, atingiram áreas de cultivo, matas, chapadas e florestas da comunidade[5]. A fazenda Normasa avançou com a abertura de novas áreas para plantio de soja e milho, derrubando com correntão árvores nativas, como pequizeiros, pau d’arco, cedro, jatobá, palmeiras de babaçu, buritizeiros e as frutíferas domésticas, como mangueiras, cajueiros e tamarineiros. Após a derrubada das árvores, o fazendeiro fez uso de máquinas para retirar os tocos e juntar as madeiras em leiras para facilitar a queima da área.

Notas

O leste maranhense e o médio Parnaíba são espaços geográficos “tampões” do avanço do agronegócio, bem como de interligação dos corredores de produção de commodities entre o Norte e Nordeste do Brasil. Área diretamente impactada pelo MATOPIBA – fronteira agrícola nacional que compreende uma grande área de Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e que está no centro dos investimentos dos capitais nacionais e internacionais para ampliação do agrohidronegócio e mineração.

Além disso, a produção de estoque de eucalipto pela empresa Suzano, que abastece olarias em Teresina/PI e Timon/MA, e a abertura de outras áreas para o plantio de soja por empreendimentos ainda não identificados pela comunidade, continua agravando a vulnerabilidade dos quilombolas. Somado a tudo isso, está a contaminação por agrotóxicos, que são pulverizados por aviões nas lavouras de soja, atingindo as casas da comunidade, os locais de extrativismo e os açudes de pesca próximos das lavouras. No período de aplicação, as pessoas da comunidade ficam por vários dias inalando o ar com o forte odor de veneno colocado no plantio.

A presença dos “sojeiros” também tem destruído as estradas de chão batido de acesso da comunidade à sede de Parnarama e às comunidades vizinhas. Houve aumento do fluxo de caminhões carregados de soja e eucalipto que saem da fazenda Canabrava, destroem a estrada e disputam espaço com os veículos dos moradores, carros pequenos e motos; por vezes ocasionam graves acidentes. Há constantemente também o interrompimento das estradas vicinais com entulhos de terra e madeira para dificultar a passagem das pessoas para a coleta de frutos e pesca nos açudes.

No final de agosto e início de setembro de 2020, os incêndios iniciados nas fazendas do agronegócio avançaram para o território Cocalinho. O fogo atingiu os campos de cerrado com as arvores de cajuí, cajá, pequizeiros, marfim, jatobá, inharé, tingui, sapucaia, jatobá de vaqueiro, açoita cavalo, manacunã, taboca e buriti, e impactaram fortemente a florada das guabirabas, que ocorre no final de outubro, um importante alimento para as abelhas. De forma aterrorizante, as chamas de fogo chegaram próximas das casas, destruindo as capoeiras de mandioca e milho, os roçados e o sítio de caju. Com isso, a comercialização de alimentos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), com 18 famílias cadastradas, foi prejudicada. Também foi afetada a produção do artesanato de cipós e fibras vegetais, como os quibanes, cestas, peneiras, balaios, vassouras, uma vez que a matéria prima usada na fabricação vem dos campos de cerrado[6].

Os efeitos dos incêndios somados à série de conflitos, violações de direitos, exclusão e ameaças ao modo de vida da comunidade ganha uma proporção devastadora a curto, médio e longo prazo. Com a fumaça, aumentou a incidência de doenças respiratórias, que afeta especialmente crianças e idosos com doenças cardíacas. Há relatos de muitas dores de cabeça nas pessoas adultas. Tudo isso ainda afeta a saúde psicológica das pessoas, visto que, devido às tensões no território, elas precisam viver vigilantes, cuidando para que o fogo não atinja suas casas.

Apesar da gravidade, não houve apoio dos governos municipal, estadual e federal no combate aos incêndios que atingiram o território. Nas últimas ocorrências, em agosto e setembro de 2020, a comunidade acionou apoio de organizações aliadas, que se juntaram em ampla mobilização, divulgando nas redes sociais o avanço do fogo. Em razão da divulgação, uma equipe do corpo de bombeiros chegou ao local dos focos de incêndios, mas não atendeu as demandas solicitadas pela comunidade.

Negação dos direitos territoriais

O processo de reconhecimento e regularização fundiária por parte do Incra é lento e violento. Em 2014, as comunidades de Guerreiro e Cocalinho foram certificadas como quilombolas pela Fundação Cultural Palmares. Em março de 2016, foi aberto o processo no Setor Quilombola do Incra para dar início à titulação[7]. No entanto, até hoje, nenhuma peça do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) foi elaborada, apenas notificações para órgãos federais informando a abertura do processo quilombola. A partir de 2009, com a chegada da Suzano Papel e Celulose, as comunidades quilombolas Cocalinho, Guerreiro, Tanque da Rodagem e São João são alvos de reiteradas ações de reintegração de posse requeridas pela empresa[8].

Desde 2010, tramita na justiça uma ação de reintegração de posse movida pelo pecuarista Orlando Costa contra a coletividade quilombola. O processo tem origem na justiça estadual, na Comarca de Parnarama, mas em 2019, após atuação jurídica da CPT/MA, a competência foi declinada para a Justiça Federal, onde segue em fase de instrução[9]. A inoperância do Incra é a maior responsável pela insegurança da comunidade, pois, uma vez o RTID concluído, o território estaria ao menos protegido quanto à ameaça de reintegração de posse.

 

Resistências

Notas
Processo nº 54230.004347/2012-99 no Setor Quilombola do Incra.
Relatório da Assessoria Jurídica da CPT Maranhão (2019, no prelo).

Processo no 1001860-39.2019.4.01.3702. Ver Jusbrasil. Página 979 do Diário de Justiça do Estado do Maranhão (DJMA) de 4 de Dezembro de 2018.

Para fortalecer essa luta, mulheres, homens, jovens e crianças se organizam e se articulam com as Guerreiras da Resistência, nos grupos de produção local, no Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM), com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), com a Articulação Nacional de Quilombos (ANQ), com a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão e a Campanha em Defesa do Cerrado[10]. Cocalinho também está engajada na luta contra o racismo ambiental e os conflitos territoriais, assumindo uma posição de denúncia junto à Defensoria Pública e ao Ministério Público Federal, bem como participando de “lives” promovidas pelas organizações parceiras. A comunidade também está inserida em diversas lutas nacionais, como Campanha Permanente de Combate aos Agrotóxicos.

A comunidade segue protegendo a sabedoria ancestral, envolvida em processos de fortalecimento da sua identidade, autonomia, organização e de resistências na defesa do bem viver. Fortalecem a cultura com as cantorias e as danças, como Lili e quadrilha junina, fazem brincadeira dos Caretas, do Baião e se revigoram através das cantigas relacionadas ao trabalho e da valorização dos ofícios de benzedeiras e benzedeiros.

A resistência também se materializa no cuidado com o território e na defesa da soberania alimentar com a conservação das sementes crioulas, mantendo os conhecimentos ancestrais do uso da cinza ou fumeiro feito no espeto. Além disso, a comunidade desenvolve sua própria estratégia de comunicação popular, como forma de denúncia das violências e anúncio dos tempos de fartura. Outra ação muito importante, é o monitoramento do território realizado pelas famílias. O trabalho coletivo fortalecido pelos mutirões aquece a solidariedade e ajuda a combater os focos de incêndios.

Leandro dos Santos, liderança quilombola do Território Cocalinho, em Parnarama/MA, e comunicador popular, escreveu o caso contando com a colaboração da Comissão Pastoral da Terra/MA