Maranhão
CERRADO/AMAZÔNIA
O Território Jaqueira está localizado na região dos cocais, no município de Timbiras, Maranhão, e é composto pelas comunidades Santa Maria, Jaqueira, Arrendamento, Cavalo Morto, Pastorinha, Mororó e São Tomé. O território tem mais de 4,3 mil hectares, está situado entre o Cerrado e a Amazônia e há pelo menos 70 anos é morada cerca de 400 famílias. São comunidades camponesas tradicionais, de quebradeiras de coco, extrativistas e ribeirinhas, que fazem uso comum da terra e estão organizadas, em conjunto com articulação camponesa e coletivos de mulheres extrativistas.
As famílias de Jaqueira possuem uma relação histórica com a terra e de organização na defesa do território, dando continuidade a um processo de ocupação que vem de longe. No município de Timbiras, há centenas de comunidades tradicionais centenárias que são constantemente ameaçadas pelo avanço da fronteira agrícola desde os anos 1980, situação que foi acentuada recentemente pelos incentivos na região conhecida como Matopiba[1].
Um dos casos mais violentos em Timbiras – e no Maranhão – refere-se à ação de um império do agronegócio bastante conhecido na região pela produção de mais de 150 produtos, entre alimentos e fumo: o grupo Maratá. A empresa tem origem sergipana e hoje exporta sucos de frutas para a Europa, além de ter também negócios na construção civil. Os primeiros relatos de violência são do ano de 2004, quando jagunços da empresa expulsaram famílias, queimando suas casas. Em resistência, elas retomaram o território, restabelecendo sua relação ancestral com as terras, as águas e as matas.
Mais recentemente, porém, uma ação extremamente violenta trouxe desespero às comunidades Jaqueira e Santa Maria e resultou em nova expulsão. Jagunços passaram meses ameaçando as famílias e deram um prazo até o mês de julho para que a comunidade deixasse o território, por bem ou por mal.
O primeiro ataque de 2004 derrubou algumas de nossas casas e tacou fogo nas outras. Saímos pra periferia, outros viajaram, pra todo lugar que a gente vai é escravizado, não tem aquela paz de produzir o nosso alimento. Retomamos a terra, ficamos um tempo tranquilos. Então em 2019 o jagunço começou a dizer que a gente não podia andar ali porque a terra era da Maratá, e que queriam a terra de volta. Nós falávamos que não conhecíamos a Maratá como dona, que vivíamos há muito tempo naquela terra”, depoimento de camponês (o nome foi ocultado para proteção).
Notas
Sobre o Matopiba, ver o artigo Ligações perigosas: fundos de pensão internacionais, incêndios e grilagens no Matopiba.
Os agricultores questionaram o prazo, pois haviam plantado muitas roças de mandioca com o objetivo de produzir farinha, e precisariam de dois anos para realização final da colheita. De nada adiantou. No dia 13 de agosto de 2019, perto do meio dia, três homens com uniformes da Agromaratá atearam fogo em 36 casas das famílias, em 2 casas de farinha, em alimentos produzidos e itens pessoais dos camponeses. Os jagunços mataram a tiros ainda um animal de estimação de um dos moradores. Os funcionários deram um prazo de 24 horas para que as famílias fossem embora e, vencido o prazo, retornaram: no dia seguinte, entupiram dois poços d’agua, incendiaram as casas restantes, destruíram com trator o que ficou em pé e deram vários tiros para o alto e em direção às árvores.
A situação de violência seguiu ainda por mais um dia, com tiros e incêndios, quando finalmente a polícia militar apareceu e os jagunços abandonaram suas motos, mas atiraram em direção aos policiais e às famílias escondidos da mata, por onde fugiram. O processo de expulsão realizado por pistoleiros mostra que a fazenda não possui a propriedade legítima da terra, pois foi uma ação realizada por conta própria, sem entrar na Justiça com ação de reintegração de posse.
O fato atingiu duramente as famílias, que perderam suas roças, mais de 300 sacas de farinha e suas moradias, e passaram a depender de favor para sobreviver. Após receber ameaças diretas, inclusive com disparo de tiros para o alto, o morador Egino Santos de Brito passou mal e foi internado, morrendo de infarto alguns dias depois. Maria Oletti, outra camponesa, teve um AVC após ver queimados centenas de quilos de coco babaçu que havia juntado. Ela ficou com perda de memória e o rosto parcialmente paralisado. O irmão dela havia sido expulso do território com fogo e violência no episódio de 2004. Há outros casos de membros das famílias expulsas em 2019 que enfrentaram a violência da década anterior e que, traumatizadas, não tiveram mais coragem de retornar ao território.
A nossa floresta é tudo para nós, é nossa essência de vida. O ataque pra tirar a gente do nosso lugar é pra destruir nosso planeta, vai contra a vida. Eles querem acabar com o lugar da gente pra colocar capim e criar gado. A gente precisa reverter essa destruição no nosso lugar.
Em outubro de 2019, foi deflagrada uma ação da polícia civil em parceria com a polícia militar nos municípios de Coroatá e Timbiras. Na fazenda Vai com Deus, de propriedade do grupo Maratá, foram apreendidos diversos armamentos, como espingardas e muita munição. Havia uma pistola ponto 40, de uso exclusivo da polícia. Quatro homens foram presos e três deles haviam participado da expulsão das famílias de Jaqueira em agosto. Um deles era o gerente Seulys Lima Franco, liberado pela polícia algumas semanas depois e demitido por justa causa pela empresa. Nessa operação também foi aprendida uma moto registrada em nome do dono da empresa Maratá, José Augusto Vieira.
Em abril de 2021, o Ministério Público Estadual apresentou denúncia contra o jagunço pelos crimes cometidos em 2019, sem responsabilizar a empresa. A justiça da comarca de Timbiras abriu processo em maio, ainda em execução.
Há ainda duas ações cíveis movidas pelo advogado que assessora a comunidade: uma de manutenção de posse na Comarca de Timbiras, remetida à Vara Agrária em São Luís, e outra de perdas e danos. As famílias pretendem entrar com mais 4 ações indenizatórias contra a empresa.
A terra que o grupo Maratá reivindica como sua está dentro da Data São Raimundo, antigo latifúndio de 4.356 hectares. Em 2020, a Justiça reconheceu a propriedade do fazendeiro José Thomé sobre a área desde os anos 1970. Ele havia entrado com ação contra o grupo em 2005. Essa decisão confirma o processo de grilagem pelo grupo Maratá. Em parte do latifúndio, no entanto, é onde vivem pelo menos desde os anos 1950 algumas comunidades, como a de Santa Maria e Jaqueira. As comunidades estão em luta para que seu direito de posse seja reconhecido.
Expansão da fronteira agrícola amplia as ameaças, mas famílias resistem
Na região, o mercado de terras está bastante aquecido. Transitando pelas estradas que levam aos territórios das comunidades, é possível observar cercas sendo colocadas ou renovadas e grandes áreas de desmatamento do Cerrado. Em reunião recente[2], o prefeito do município disse, sem apresentar documentação, que somente em 2021 foram vendidas 26 áreas a grupos de fazendeiros cearenses, pernambucanos, alagoanos e sergipanos, o que gerou expulsão de algumas famílias em plena pandemia. Para os camponeses, o temor ao coronavírus se acoplou ao terror do modus operandi do agronegócio, que se utiliza de violência, fogo, veneno e desmatamento para expulsá-los de seus territórios.
As comunidades tradicionais de Timbiras não estão sendo consultadas sobre a implementação desses empreendimentos, tampouco sobre licenças emitidas a favor de fazendeiros para desmatamento. Assim, o governo do estado do Maranhão e sua Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema), assim como os governos locais, não estão respeitando a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que prevê a realização de consultas de forma livre, prévia e informada, direito das comunidades.
Notas
Historicamente, a região de Timbiras é um dos principais locais de saída de pessoas que acabam sendo escravizadas em outras regiões do país. Desde a década de 2000, a extrema pobreza a qual muitas famílias estão expostas, em grande parte motivada pelos processos de grilagem e concentração da terra, as levam para situações de migração forçada. Em algumas comunidades, pessoas precisam sair para trabalhar, complementando a renda do trabalho na terra.
Foi o que aconteceu com algumas das famílias expulsas pelo grupo Maratá. Abaladas pelos acontecimentos, sem apoio dos órgãos públicos, viveram tempos de fome, desesperança, adoecimentos de mulheres com depressão e tantas outras dores. Diante da perda da autonomia alimentar, camponeses saíram para regiões do agronegócio nas regiões Sudeste, Norte e Centro-Oeste, em busca de trabalho, deixando mulheres, filhas e filhos em casa de parentes. As comunidades e lideranças ameaçadas não estão em programas de proteção, apesar da ampla divulgação do caso em redes sociais e por meios de comunicação com alcance nacional[3].
Em dezembro de 2020, entretanto, após a prisão do gerente da fazenda, 40 famílias camponesas iniciaram a retomada do território. Apesar de esquecidas pelo poder público municipal, um ano depois, as famílias seguem animadas: já há comida na mesa, colhida da lavoura das próprias roças, casas de moradia e de farinha construídas. As famílias estão produzindo e protegendo a mata e as águas e nascentes. Os mutirões estão sendo fortalecidos, assim como a espiritualidade das comunidades, o cuidado da saúde e das sementes criolas. As famílias resistem ao cultivar arroz, mandioca, feijão, batata doce, macaxeira, leguminosas e frutíferas, fazendo a extração da amêndoa do babaçu para produção de azeite e sabão.
Estamos construindo as casas de novo, já tem bastante plantação começando a produzir. O tempo está chuvoso, a lua está boa e estamos aproveitando para plantar. Agora tem uns compradores de terra com má fama andando por lá. A gente se sente ameaçado o tempo todo. Não temos pra onde ir, as outras comunidades também estão ameaçadas. E este é o nosso território, é o território que a gente vive. Ali é um lugar sagrado. Só existe pra nós esse lugar, lugar melhor não existe.
Fotografia: CPT Jaqueira – Roças na área retomada começam a produzir 1
Notas
Reportagem investigativa “Café com pólvora”, Intercept (maio/2021), teve um grande alcance e repercussão negativa para a empresa.
As mulheres da comunidade estão se organizando na articulação das mulheres camponesas em conflitos agrários do município de Timbiras. São aproximadamente 20 mulheres quebradeiras de coco babaçu e agricultoras, organizando convivência, celebrações da memória dos processos de resistências e formações para continuar cuidando do território e da vida. As mulheres trazem experiências diversas: algumas já estiveram no corte de cana no sudeste e outras permaneceram no território. Participaram de intercâmbio para troca de experiências em agroflorestas e de participação nos processos de luta.
Assim, organizada e produzindo, a comunidade pretende continuar vivendo no território que é seu.
[A identidade das pessoas que deram depoimentos será mantida em sigilo por segurança.]
Comissão Pastoral da Terra no Maranhão