Pará

AMAZÔNIA

O processo de ocupação e colonização da região Amazônica causou – e vem causando até os dias atuais – um processo extremamente violento para as populações que sempre viveram em seus territórios, convivendo com a má gestão e inoperância dos órgãos públicos incapazes de atuarem na resolução dos conflitos. Muitos desses conflitos foram ocasionados pela conivência do próprio Estado.

Neste texto, sistematizamos o caso do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, por meio do qual é possível evidenciar uma das diversas realidades conflituosas existentes na Amazônia Brasileira, com destaque para a situação de desmatamento, incêndios, conflitos agrários e avanço do agronegócio.

O PDS Terra Nossa foi criado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em junho de 2006[1], com uma área de 149.842 hectares, parte sobre a gleba Curuá (33,7% da área do PDS) e parte sobre a gleba Gorotire (66,7%). Está localizado nos municípios de Novo Progresso e Altamira, ambos no sudoeste do Pará. Novo Progresso fica às margens da rodovia BR 163, na divisa do Pará com Mato Grosso.

O contexto de criação do PDS: o Estado de ilegalidade

É importante trazermos um breve histórico do contexto em que o PDS está inserido, ao começarmos pela criação de municípios da região sudoeste do Pará. Um estudo realizado por Castro, Monteiro e Castro[2] evidencia que a origem do município de Novo Progresso e do distrito de Castelo de Sonhos, município de Altamira, teve como ponto de partida as políticas de colonização dos governos da ditadura militar, embora a ocupação nessa região tenha se intensificado com a construção da BR-163, inaugurada em 1976, e seu fluxo populacional só tenha diminuído na década de 1990.

O geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira[3] demonstra que essas cidades nasceram e se constituíram a partir de atividades ilegais contra o patrimônio público, como grilagem de terras, exploração de madeireiras e extração ilegal de ouro. Essas atividades atraíram empresários vindos principalmente do Sul para se apropriar das terras e explorar os bens naturais existentes na região e, de outro lado, migrantes nordestinos empobrecidos em busca de terra e trabalho.

Inserido nesse contexto, está o processo de ocupação das famílias assentadas no PDS Terra Nossa nos anos 2000, por meio de sorteios de lotes, como bem demonstra o próprio Incra em seu diagnóstico fundiário:

As famílias assentadas inicialmente no PDS Terra Nossa ocupavam o PDS Vale do Jamanxim, criado em 2005 na área onde foi criada, no ano seguinte, a Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim. Com a criação da Unidade de Conservação, as famílias foram forçadas a sair do PDS Vale do Jamanxim e incorporaram-se a dois acampamentos de trabalhadores sem-terra apoiados pelo Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Novo Progresso – STTRNP. A partir de um sorteio realizado entre as famílias acampadas, o INCRA selecionou os beneficiários para ocupar 240 (duzentos e quarenta) lotes inicialmente demarcados, embora a capacidade do projeto seja de 1000 famílias e houvesse 1000 lotes projetados[4].

Nas terras onde foi implantado o assentamento, já existia o processo de grilagem com a conformação de muitas áreas tidas como fazendas. O Incra realizou o cadastro e ocupação dos lotes pelas famílias, no entanto não retirou os “fazendeiros” e ocupantes irregulares do PDS, embora o diagnóstico fundiário do próprio órgão tivesse identificado sua presença, fato que contribui para diversas situações de conflitos e violações de direitos humanos existentes até os dias atuais.

Só em 2018 foram 3 assassinatos de trabalhadores rurais. Há fortes indícios de um quarto assassinato no mesmo ano, pois um sindicalista que sofria diversas ameaças – em função do conflito envolvendo grilagem – desapareceu e seu corpo nunca foi encontrado. Atualmente, alguns assentados convivem com ameaças de morte, a exemplo de Maria Marcia Elpidia de Melo, incluída no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos do Estado do Pará. A liderança sofreu um atentado contra sua vida em 2020, quando um carro a perseguiu e bateu no veículo em que ela estava, com seus ocupantes afirmando que ela “deveria morrer”[5]. Seu filho, que também morava em um dos lotes, foi espancado e ameaçado de morte. De acordo com a liderança comunitária:

os que vão pra cima morrem, desaparecem. E eles inventam qualquer história pra justificar. Aí vai a polícia lá e coloca que bebeu cachaça, brigou, morreu e acabou[6].

O PDS Terra Nossa é prova cabal do papel do Estado como principal violador dos direitos humanos: o “abandono” dos assentados regularmente inscritos na relação de beneficiários do PDS Terra Nossa não pode ser visto como ausência ou falta de estrutura para resolução dos conflitos. Demonstra-se, a cada dia, uma intencionalidade do Estado na forma de agir, favorecendo os ocupantes irregulares em detrimento dos assentados. A convivência entre assentados legítimos que cumprem os critérios exigidos pela legislação de beneficiários da reforma agrária e os fazendeiros e madeireiros com interesses e perfis divergentes não tem como ser pacífica, uma vez que tal fato, por si só, já configura uma situação de conflitos de interesses.

O resultado disso é o cenário de violência e degradação ambiental desse território, que – em tese – deveria ser um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, modalidade de assentamento diferenciado criado pelo próprio Incra, por se tratar de uma região com vasta floresta em torno de um mosaico de unidades de conservação ambiental. Nele, o extrativismo e manejo sustentável para subsistência dos assentados deveriam conviver de forma harmoniosa com a natureza, mantendo conservada a área de reserva coletiva. No entanto, a reserva está totalmente ocupada por fazendas de gado e, após o chamado “Dia do Fogo”, as grandes plantações de soja se consolidaram e se expandiram no entorno do PDS.

Notas
Portaria nº 03 do Incra/SR-30.

CASTRO, E. R.; MONTEIRO, R.; CASTRO, C. P. Dinâmica de atores, uso da terra e desmatamento na rodovia Cuiabá–Santarém. Belém: NAEA, 2004.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. BR-163 CUIABÁ-SANTARÉM: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização. In: TORRES, Mauricio. Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR 163. Brasília. CNPQ, 2005, p. 67 – 183.

INCRA. Diagnóstico Fundiário do Projeto de Desenvolvimento Sustentável do PDS Terra Nossa. Ordem de Serviço nº 54/2016/INCRA/SR30G. Santarém, 2016. P. 23

Reportagem “’Eu sei que vou morrer. Só não quero que matem meu filho’, diz liderança no Pará”, de Ciro Barros (Agência Pública, 03/09/2019).

Para além do “Dia do fogo”: o PDS queima anualmente

Aqui, destacamos os principais elementos causadores do cenário de violência e degradação, mas sabemos que em um único texto não é possível mencionar todas as mazelas que existem no PDS Terra Nossa. Os incêndios, o desmatamento, a exploração minerária e extração ilegal de madeira têm sido as principais atividades que produzem a violência contra os agricultores e agricultoras, assentados e assentadas do Terra Nossa.

Destacamos o evento criminoso de grande repercussão nacional e internacional que ocorreu entre os dias 10 e 11 de agosto de 2019, conhecido como “Dia do Fogo”. De forma organizada e orquestrada por ruralistas e pecuaristas da região norte do país, principalmente do oeste paraense, diversas áreas públicas foram incendiadas, em plena floresta amazônica, visando à grilagem das mesmas.

 

 

O PDS Terra Nossa foi um dos alvos dos grileiros, e os incêndios destruíram roçados, plantações e intimidaram lideranças e famílias que vivem no assentamento. Pouco tempo depois, diversas organizações denunciaram que a área incendiada foi utilizada para plantação de soja, e que até mesmo políticos locais ameaçaram as famílias denunciantes[7].

Notas

Se os incêndios ganharam destaque em 2019, o PDS queima todo ano cumprindo a função de limpar a área para dar lugar à soja e para intimidar as famílias camponesas. Em 2022, exatamente três anos depois do “Dia do Fogo”, a mesma ação foi repetida pelos mesmos criminosos contra o PDS Terra Nossa, e novamente o mesmo ciclo de violações avançou sobre os moradores. Uma carta de solidariedade[8] mobilizada pela Comissão Pastoral da Terra e pela articulação Agro é Fogo reuniu mais de 50 organizações que cobraram os poderes públicos locais para que tomassem medidas de proteção às famílias e em combate aos incêndios. O caso ganhou repercussão nacional e foi noticiado no principal telejornal do país[9].

Pressão do agronegócio e expansão da soja

A floresta e seus povos vivem a pressão do agronegócio no sudoeste do Pará: a BR 163 é usada como um corredor de escoamento da soja, intensamente produzida em seu entorno no Mato Grosso e que tem avançado em direção ao norte. Assim, historicamente, o território da BR 163 é estratégico para o agronegócio e seus aliados locais, para atender demanda de escoamento, por meio do rio Tapajós.

Está em curso na região a construção de toda uma infraestrutura logística, incluindo um complexo portuário, impactando de inúmeras formas as comunidades. É evidente que esse trecho da BR 163 no estado do Pará, que liga o município de Novo Progresso até Itaituba, às margens do rio Tapajós, é estratégico para favorecer os interesses do agronegócio. Por isso, a pressão sobre as áreas de florestas e territórios de povos e comunidades tradicionais, bem como outras áreas de terras públicas já destinadas, como é o caso dos assentamentos, tem aumentado exponencialmente. Seria este um dos motivos pelos quais o Estado, principalmente através do Incra, não age na resolução dos conflitos no PDS Terra Nossa?

A expansão da soja invadiu[10] áreas no PDS Terra Nossa queimadas pelo “Dia do Fogo”, que segue anualmente. O plantio do grão, dentro e fora do assentamento, tem avançado após os incêndios que acontecem todo ano, evidenciando que o fogo para desmatamento, grilagem e territorialização do agronegócio está sendo usado de forma eficaz e sem intervenção do Estado. Assim, aumenta gradativamente a destruição do território e da floresta, e se agravam as violações de direitos humanos cometidas contra os assentados e assentadas da reforma agrária. O fogo, gera um resultado irreversível em muitas áreas dentro do PDS, sobretudo nas áreas de preservação, que perdem o sentido de existirem como tal, sendo logo em seguida derrubadas para virarem pastos e, posteriormente, plantadas com soja ou capim.

Portanto, o cenário de ocupação irregular do PDS Terra Nossa, que sabemos não se tratar de uma exceção, demonstra uma intencionalidade do Estado em ser “ausente” nos assentamentos, atestada, por um lado, pela morosidade na implantação dos créditos agrícolas e na realização de projetos de desenvolvimento dos assentamentos, que garantam a permanência e sustento de assentados e assentadas nos lotes. Por outro lado, o Incra nada tem feito também para impedir a venda irregular de lotes, como revisão ocupacional e retirada dos ocupantes irregulares já devidamente identificados pelo órgão, aumentando assim a cada dia os conflitos no campo.

Diante disso, assentados e assentadas ainda resistem e seguem reivindicando seus direitos, através da única associação que faz a resistência, a Nova Vitória. Eles e elas não medem esforços, arriscando suas vidas, para exigir dos órgãos o cumprimento das políticas públicas, além de denunciarem os crimes ambientais e crimes contra pessoas.

Notas

Ver a reportagem “Área incendiada no ‘Dia do Fogo’ foi transformada em plantação de soja”, de Daniel Camargos (Repórter Brasil, 08/02/22).

José Raimundo de Santana é agente da Comissão Pastoral da Terra Itaituba/PA, advogado e pós-graduado em Direito Minerário.

Raione Lima Campos é coordenadora do regional da Comissão Pastoral da Terra Pará, advogada e especialista em Direito Agrário pela UFG.