Entre o desmatamento, os incêndios florestais e a apropriação da terra: o caso do Paraguai

Por Guillermo Achucarro

Relatar e visibilizar o contexto do desmatamento no Paraguai é, definitivamente, expor uma das principais problemáticas relacionadas à crise climática em todo o território nacional na atualidade, já que, a partir desse fenômeno em particular, são gerados inúmeros desequilíbrios ecológicos, ambientais, bem como uma grande disputa social, econômica e política.

Há setores da sociedade paraguaia muito mais vulneráveis do que outros aos diferentes fenômenos da crise climática, como os povos originários, as comunidades rurais, a agricultura familiar camponesa, o território dos pântanos etc.. No entanto, existe um setor da sociedade com “maior responsabilidade” do que outros no que se refere à atual crise ecológica: os grandes proprietários de terra relacionados à atividade agrícola extensiva. Partindo desse princípio, neste artigo são desenvolvidos alguns elementos essenciais para a compreensão do contexto estrutural e conjuntural da questão climática, com o objetivo de compreender a relação estrita entre o desmatamento, o Estado, e os setores de poder no Paraguai.

Queimada ilegal no Chaco para ampliação de campos de soja. Foto: Jim Wickens, Ecostorm/Mighty Earth
Queimada ilegal no Chaco para ampliação de campos de soja. Foto: Jim Wickens, Ecostorm/Mighty Earth

O desmatamento histórico no Paraguai em um contexto de desapropriação ecológica

A atual “crise climática” tem como origem direta as emissões produzidas pelas atividades humanas desde a revolução industrial, de acordo com o consenso científico; portanto, é fundamental analisar o processo produtivo e reprodutivo da humanidade. É assim que a grave realidade da mudança climática deixou de ser assumida como um simples fenômeno aleatório que pode ou não afetar certos espaços geográficos do planeta pouco ou muito vulneráveis a certas condições meteorológicas. Hoje em dia, a magnitude das diferentes catástrofes ecológicas começou a ser vista e compreendida também em uma dimensão econômica, social e histórica, por isso o termo “Crise” é assumido.

No Paraguai, as atividades extrativistas próprias do agronegócio se encontram entre as principais emissoras de gases de efeito estufa (GEE). A contaminação de GEE no nível nacional está concentrada no setor agropecuário, especificamente a partir da “mudança do uso do solo” (desmatamento) e da agricultura[1]. Esse setor, por sua vez, está concentrado nas mãos de aproximadamente 2% da população, que é possuidora de 85% das terras no país; isso se reflete no índice de Gini no Paraguai, que é de 0,93, o que mostra uma desigualdade quase perfeita no país que possui a maior concentração de terras do mundo[2].

Portanto, os impactos (tanto ambientais quanto econômicos) da matriz econômica agroexportadora e a inserção do Paraguai no sistema econômico mundial – como fornecedor de matérias primas em detrimento do cuidado dos bens comuns, da natureza e da população – estão diretamente relacionados à história que levou à propriedade desigual de terra. Consequentemente, a problemática do desmatamento deve ser compreendida, necessariamente, a partir de uma visão estrutural e sistêmica, e não como um problema isolado sem relação alguma com o modelo de produção imperante no Paraguai.

Com seis milhões de hectares desmatados entre 2001 e 2019, o Paraguai é o segundo país que mais perdeu cobertura arbórea na região sul-americana, depois do Brasil, segundo o sistema de satélites Global Forest Watch (GFW[3]). Apesar de ter menor superfície, o país supera nações como a Argentina, o Peru ou a Colômbia em quantidade de áreas destruídas[4].

De acordo com o relatório do GFW, 93% da perda de cobertura florestal no Paraguai é devida a atividades ligadas à produção de matéria prima como a carne bovina, a soja e a madeira. De fato, o Paraguai é considerado um dos maiores exportadores de soja e de carne em todo o mundo. A Plataforma Nacional de Commodities Sustentáveis indica em seu site que a produção de soja abrange uns 3.380.000 hectares no país (La Nación, 2020).

O mapeamento satelital da WWF sobre desmatamento aponta que, nos últimos dez anos, foram destruídos 231.882 hectares nos departamentos que compõem o “Bosque Atlântico do Alto Paraná”, que equivale a 45% de todas as áreas protegidas. Entretanto, a área desmatada é maior que as 24 reservas e parques nacionais que formam os pontos protegidos da região. Em outras palavras, apenas a Reserva da Biosfera Mbaracayú, com 226.995 hectares, faz com que a área desmatada não exceda a área total protegida nessa região do país.

Quanto às regiões, a área do grande Chaco paraguaio (Região Ocidental) foi a que sofreu a maior destruição em 2019, abrangendo 78% de tudo o que foi desmatado naquele ano, ou seja, 244.324 hectares. Na Região Oriental, o número chega a 69.948 hectares desmatados[5]. Em um país no qual 90% das terras produtivas pertencem a famílias proprietárias agroindustriais, a elite política está estreitamente entrelaçada a esses interesses e não tem impulsionado políticas coerentes para enfrentar o desmatamento no Paraguai[6].

Notas
Segundo o IBA3, elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Paraguai (MADES), 50,20% dos GEE provêm do setor “agricultura”; 29,11% do setor “mudança do uso de solos”; 16,28% do setor energia; 2,59% do setor resíduos; 1,82% do setor IPUU.
O Global Forest Watch (GFW) é um sistema dinâmico online que monitora e oferece relatórios sobre as áreas florestadas do mundo. Trata-se de um projeto do Instituto de Recursos Mundiais (World Resources Institute, WRI por suas siglas em inglês) e do Google, que tem também a colaboração de 40 instituições Internacionais, como por exemplo a Universidade de Maryland (UMD), o Centro para o Desenvolvimento Global (CGD) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

La Nación, 2020.

Segundo a plataforma Global Forest Watch, o desmatamento durante o ano de 2019 está 93% associado à produção de matérias primas. Em outras palavras, o desmatamento em grande escala está ligado, principalmente, à expansão agrícola comercial.
La Nación, 2020.

Os incêndios florestais como consequência direta do modelo econômico

Assim como nos anos 2019 e 2020, entre os meses de agosto, setembro e outubro, foram registrados numerosos focos de incêndios em todo o território nacional. De acordo com o Relatório de Focos de Calor sobre a República do Paraguai, em 26 de setembro de 2020 foram detectados 9.403 focos de calor em todos os departamentos e na Capital, em maior número em Presidente Hayes, Alto Paraguay, San Pedro, Concepción e Canindeyú. Novamente, em agosto de 2021, foi registrado um total de 8.699 focos de calor em nível nacional.
Áreas desmatadas para a pecuária no Chaco Paraguaio [PNCAT é o Patrimônio Natural e Cultural Ayoreo Totobiegosode, território historicamente ancestral Ayoreo]. Fonte: Global Forest Watch/Earthsigth/Mongabay
Áreas desmatadas para a pecuária no Chaco Paraguaio [PNCAT é o Patrimônio Natural e Cultural Ayoreo Totobiegosode, território historicamente ancestral Ayoreo]. Fonte: Global Forest Watch/Earthsigth/Mongabay

Essa onda de incêndios atinge principalmente os setores mais vulneráveis, em particular os povos originários e os setores camponeses. Esta seção expõe várias questões para compreender a magnitude da problemática.

O Relatório Local Paraguai (IQLPy, 2020)[7] menciona que os incêndios florestais e de campos no Chaco Paraguaio são verificados entre os meses de agosto e outubro, com maior incidência de meados de agosto a meados de setembro. O mesmo relatório afirma que a origem desses incêndios é totalmente antropogênica, pois são utilizados pelo setor agropecuário de maneira consuetudinária no manejo dos pastos, com base na prática da “queima controlada” de campos, realizada com o objetivo de facilitar o crescimento da folhagem do pasto, mantendo suas condições de nutrição e palatabilidade. Nesse aspecto, cabe destacar que a grande maioria dos focos de incêndio ocorrem, na realidade, em áreas previamente desmatadas[8].

No âmbito da produção pecuária na região do Chaco, verifica-se um processo de “savanização” de ambientes de matagal e de floresta. Com a adoção de práticas que se distanciam dos parâmetros quantitativos e qualitativos que formam o “equilíbrio” ambiental nos sistemas tradicionais, perde-se a capacidade humana de controlar a queima e a capacidade natural de limitar os incêndios. Isso se dá quando a prática da queima é transferida para outros ambientes não adaptados ao fogo, como é o caso das pradarias e savanas. No âmbito do sistema tradicional, composto principalmente por espécies de gramíneas nativas, a biomassa combustível disponível é, normalmente, de rápida combustão e de escasso potencial de armazenamento de temperatura, o que origina processos de ignição efêmeros ou quase fugazes, com pouca probabilidade de expansão para outros tipos de vegetação de maior densidade (IQLPy-2020).

A imprudência daqueles que praticam a “queima controlada” tem aumentado a dispersão eficaz dos incêndios iniciados em toda a geografia do Paraguai e não apenas no Chaco, embora seja no Chaco que os incêndios adquiram dimensões imensas.

Um exemplo de comunidades completamente vulnerabilizadas diante do problema dos incêndios florestais é o povo Ayoreo Totobiegosode, historicamente arraigado no “Chaco Paraguaio”. Em 2019, os fortes incêndios no Chaco paraguaio obrigaram pelo menos um grupo Ayoreo isolado a emigrar para outra região do Chaco devido à impossibilidade de se alimentar em face ao dano ambiental. Essa migração forçada aumentou drasticamente a possibilidade de um encontro não desejado com grupos não-indígenas[9].

De acordo com a plataforma Global Forest Watch (GFW), durante a última semana de setembro de 2020, foi identificado um total de 276 focos de incêndios dentro do Patrimônio Natural e Cultural Ayoreo Totobiegosode (PNCAT), território historicamente ancestral Ayoreo. Desses 276 focos de incêndios, 91 provieram da estância “Yaguareté Pora”[10], que se encontra localizada dentro da reserva protegida PNCAT. A comparação de imagens de satélite realizada pela organização Earthsight aconteceu entre os dias 23 e 28 de setembro de 2020. Ela mostra um total de 12,7 hectares “recém-queimados”[11].

Novamente no mês de outubro, Earthsight observou aproximadamente 200 focos de incêndios dentro do território ancestral Ayoreo. Cerca de 150 desses focos estavam dentro da propriedade da Caucasian S.A., outra empresa brasileira que já teve disputas legais e territoriais com os Ayoreo Totobiegosode. Tais focos de calor dentro da propriedade da Caucasian S.A. se encontram em locais onde o desmatamento ilegal já havia sido denunciado.

Notas
Mencionado no GTI PIACI (2020).
Esse esclarecimento é feito a fim de estabelecer uma diferença entre as práticas vinculadas à agricultura extensiva e as práticas camponesas históricas. Como mencionado na introdução do presente artigo, o desmatamento no Paraguai está diretamente relacionado com a atividade do agronegócio. Consequentemente, a atividade de “queimas controladas” nos campos no âmbito nacional está ligada a esse setor.
Empresa brasileira dedicada ao gado. Adquiriu 78.000 hectares dentro do território ancestral Ayoreo no ano de 2002 através de contatos políticos.

Earthsight, 2020.

O papel do Estado

Ecossistema do Grande Chaco devastado para a abertura de novos campos de soja. Foto: Jim Wickens, Ecostorm/Mighty Earth
Ecossistema do Grande Chaco devastado para a abertura de novos campos de soja. Foto: Jim Wickens, Ecostorm/Mighty Earth

O Estado paraguaio tem atuado consistentemente para promover o desmatamento desenfreado do Chaco ao gerar e manter condições ideais para a expansão da pecuária e do agronegócio.

O relatório “Yvy Jára (Dono da Tierra)” da Oxfam descreve esse fenômeno. Aos pecuaristas, que muitas vezes são estrangeiros, é oferecido: “desde o baixo preço da terra até a baixa pressão fiscal (com o imposto sobre juros e o IVA mais baixos da região), passando pela ausência de tarifas de exportação, a inexistência de limites à posse da terra, os incentivos fiscais ao investimento externo (que incluem a isenção do imposto de renda durante os primeiros anos do investimento), os tratados internacionais que protegem os investimentos ou a prática ausência de restrições para a compra por parte de estrangeiros. (…) Soma-se a tudo isso os quase inexistentes controles estatais sobre o cumprimento das normas ambientais e trabalhistas” [12].

A falta de cumprimento de leis ambientais mencionada é significativa. Por exemplo, apesar de a Lei Florestal (422/73) estipular que os proprietários de terras no Chaco devam deixar 25% de suas terras como reservas naturais e outros 15% como faixas de florestas em áreas desmatadas, dados do Instituto Florestal Nacional (INFONA) demonstram que 24% do desmatamento no Chaco paraguaio, no período de 2017 e 2018, foi realizado sem uma licença ambiental obrigatória para a mudança do uso do solo[13].

O atual governo continua promovendo o desenvolvimento acelerado do Chaco[14] e o presidente Abdo Benítez tem se mostrado como um forte defensor dos interesses do setor pecuário e do agronegócio, rotulando como “preguiçosos” aqueles que buscam uma reforma tributária que poderia afetar esse setor[15].

Notas

Guerreña, A. Rojas, L. 2016. 

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Guillermo Achucarro é Engenheiro Ambiental pela Universidade Nacional de Assunção, com mestrado em hidrologia pela Universidade de Montpellier – França. É pesquisador sobre políticas climáticas e transição energética na BASE-Is, docente universitário e militante social.