Localizada no Pantanal mato-grossense, no encontro das bacias dos rios Cuiabá e São Lourenço, a Terra Indígena (TI) Baía dos Guató tem 19 mil hectares, a maior parte dos quais no município de Barão do Melgaço e uma pequena parte no município vizinho de Poconé. Nela vivem atualmente 202 indígenas Guató, de acordo com o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Siasi/Sesai) de 2014.[1]
Localização da TI Baía dos Guató.
Localização da TI Baía dos Guató. Crédito: Aid Environment.

Os primeiros registros escritos sobre os Guató datam de relatos de viajantes no século XVI. Os Guató são um dos povos mais antigos do Pantanal, tendo ocupado praticamente toda a região Sudoeste do estado do Mato Grosso, inclusive terras hoje pertencentes ao Mato Grosso do Sul e à Bolívia.

Os indígenas Guató costumam morar em aterros construídos (terrenos elevados artificialmente para não serem inundados durante as enchentes) -, os mais antigos dos quais erguidos há 8.000 anos. A invasão bandeirante do século XVIII e o alastramento da varíola a partir do contato com os soldados na Guerra do Paraguai, no século XIX, atingiu duramente essa população, mas foi no século XIX e, mais intensamente no século XX, com a entrada do gado no Pantanal, que a perda do território se acelerou pela invasão dos fazendeiros. Além de tomar suas terras, os fazendeiros também utilizaram aterros indígenas para construir as sedes de fazendas e currais de gados. Alguns indígenas migraram para as cidades e outros passaram a trabalhar para as fazendas que se instalavam ali, em condições descritas como de escravidão por Seu Domingos, o mais velho dos Guató. Em razão desse processo, o povo Guató chegou a ser considerado extinto ao final dos anos 1950, até que, em 1976, missionários identificaram Guató vivendo na periferia de Corumbá e, posteriormente, em outras cidades dos dois estados. Iniciou-se então um processo de reorganização para lutar por seu reconhecimento e direitos territoriais. São hoje considerados os últimos canoeiros de todos os povos indígenas que viveram nas terras baixas do Pantanal.[3]

Lutando por sua r-existência, os Guató se veem, mais uma vez, atacados pela expansão da fronteira agropecuária sobre seu território ancestral no Pantanal. Seu Domingos está desolado pela tragédia nunca antes vista nessas proporções.

Seu Domingos, com 117 anos, o mais idoso do Pantanal, sua filha Berenice com esposo e bisneto
Seu Domingos, com 117 anos, o mais idoso do Pantanal, sua filha Berenice com esposo e bisneto Lourenço em 12/10/2020. Crédito: Aloir Pacini (PPGAS - UFMT)
Notas

Instituto Socioambiental (ISA). Terra Indígena Baía dos Guató. In: Terras Indígenas no Brasil.

Instituto Socioambiental (ISA). Guató. In: Povos Indígenas no Brasil.

ISA. Guató.
A Terra Indígena Baía dos Guató foi devastada pelo fogo nos incêndios sem precedentes no Pantanal em 2020[4]. Apesar de estarem no Pantanal, a maior área continental alagada do planeta, eles sofrem com a escassez de água potável, falta de energia elétrica, assistência de saúde e educação escolar. Contudo, o problema maior é a falta de regularização fundiária, pois o território foi demarcado e homologado pelo Decreto 9.356 de 27 de abril de 2018 e suspenso por liminar da Justiça em dezembro do mesmo ano[5], o que traz insegurança jurídica e acirra os conflitos com os que querem se apossar de partes dessa TI.
Notas

Radio Agência Nacional. Decreto homologa demarcação da terra indígena Baía dos Guató em MT, 27/04/2018. Parte da área é contestada na Justiça por uma fazenda da região, que mantém gado na parte em litígio.
André Borges. Única demarcação de terra indígena feita por Temer é suspensa pela Justiça. O Estado de S.Paulo, 20/12/2018.
Gil Alessi. Guató, último povo a ter terra demarcada pode ser primeiro a perdê-la sob Bolsonaro. El País, 14/01/2019.

Gráfico focos de calor: comparativo últimos 24 meses
Fonte: ISA, 2021.
O tempo da estação seca se estendeu no ano de 2020. As cabeceiras dos rios formadores do Pantanal, que foram desmatadas, não conseguem mais segurar as águas e os corixos (canais) que secaram em diversos pontos. A pouca água que restava ficou parada e enlameada, e se tornou a única alternativa para os humanos e os animais, principalmente os jacarés que desidrataram em torno dos corixos secos e morreram. No Pantanal mato-grossense, as Terras Indígenas Tereza Cristina e Perigara, do povo Bóe (Bororo), e a Baía dos Guató tiveram mais de 80% de sua área devastada pelos incêndios. Dos 19 mil hectares da TI Baía dos Guató, 16.704 foram queimados em 2020, praticamente 88% do território.
Queimadas em 29 de agosto de 2020.
Queimadas em 29 de agosto de 2020. Crédito: Aid Environment.
Queimadas em 29 de agosto de 2020.
Queimadas em 29 de agosto de 2020. Crédito: Aid Environment.
Em 02 de novembro de 2020, 16.704 hectares da TI Baía dos Guató estavam queimados.
Em 02 de novembro de 2020, 16.704 hectares da TI Baía dos Guató estavam queimados. Crédito: Aid Environment.
Em outubro de 2020, a pajé Dona Sandra dos Santos (Guató) lamentou a devastação, contando que nem as folhas verdes que buscava para fazer chá para auxiliar os parentes conseguia encontrar mais: “As pessoas bebem água do rio cheio de agrotóxico e ficam com diarreia, vomitação, dor de barriga. […] Espia como está a nossa natureza, a nossa saúde. As árvores não têm nem pra onde correr!”. E concluiu: “O fogo devastou também dentro de mim!”. Sandra ressaltou que não tem coragem de sair do seu lugar, pois sabe que vai encontrar as árvores centenárias devastadas.

Incêndios na Terra Indígena Baia dos Guato. Crédito Povo Guató.

No aterro de Sandra, toda a vegetação em volta da sua casa de chão batido e o telhado de palha foram destruídos pelo fogo. Um dos netos de 3 anos a auxiliou a jogar água para a casa não queimar. As plantações de banana, mandioca, cana, abacaxi e outros produtos que os indígenas cultivam quando as águas baixam nos aterros feitos por seus antepassados há milhares de anos acabaram consumidas pelo fogo no pior incêndio já registrado no Pantanal. Os animais estavam passando fome no meio da destruição e uma onça atacou o indígena Nardo Guató. Alessandra Guató, a filha de Sandra que é mestranda em Antropologia na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), compreendeu: “Nesta época, ela com filhote… e com a queimada, estão com muita fome!”.

Os Guató protegeram o território dos incêndios criminosos com os próprios corpos. Eles sabem que o destino das árvores, dos bichos e das águas na TI Baía dos Guató está intrinsecamente relacionada a sua continuidade como povo. Diante dos interesses dos grileiros, que têm usado os incêndios criminosos como arma para ameaçá-los, a regularização do território Guató é mais urgente do que nunca.

Aloir Pacini é docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)