Notas
Observatório BR-319. Informativo No 15, janeiro de 2021.
A reconstrução e repavimentação da BR-319 implicará em consequências perversas aos povos indígenas e à diversidade ecológica da região. Em razão disso, a rodovia que liga Manaus, no centro da Amazônia, a Porto Velho, localizado no extremo sul da floresta, é considerada um dos pontos mais críticos na perspectiva da proteção ambiental, pela possibilidade de conexão do arco do desmatamento à Amazônia Central, trazendo consigo os atores e investimentos causadores do desmatamento a uma região de extrema sociobiodiversidade e bastante conservada.
Vale lembrar que o “arco do desmatamento” é como se convencionou chamar a área ao longo das margens sul e leste da região Amazônica brasileira que, além do desmatamento, tem o maior número de conflitos por terra e assassinatos de ativistas ambientais, camponeses e povos tradicionais. Sendo assim, a expectativa de reconstrução e repavimentação da rodovia eleva a pressão sobre a vasta área de floresta tropical na parte oeste do estado do Amazonas, em decorrência do aumento do fluxo de pessoas para a região. Como sabemos, os processos de abertura de estradas laterais e aumento demográfico por meio da migração são responsáveis pelo desmatamento, extração de madeira, incêndios florestais, grilagem de terras e surtos de malária, entre outros impactos. Apesar de haver uma visão disseminada pela lógica desenvolvimentista de que a BR-319 pode trazer prosperidade econômica para os municípios ao longo desta (abreviar distâncias e custos de transporte), é importante dizer que, se não houver medidas eficazes para aumentar a governança e fortalecer a capacidade de gestão ambiental, a estrada deve propiciar a ocupação e a exploração dos recursos naturais e incrementar drasticamente o desmatamento na região.
A BR-319 eleva a pressão sobre terras indígenas e unidades de conservação federais na área de influência da estrada, causando vários impactos ambientais, segundo constata o representante do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Victor Bruno (gestor da Resex Lago do Capanã Grande): “Houve um aumento das infrações ambientais – invasões e loteamentos – à beira da estrada por migrantes de outros estados, desde o ano de 2015 até agora. Nesse sentido, a venda de terrenos tem aumentado dentro da faixa de domínio da BR, que pertence à União, e são, portanto, loteamentos irregulares”[2]. Trata-se de um fenômeno comum que segue o anúncio de projetos dessa ordem: o aumento da grilagem e a especulação fundiária no eixo das estradas, apostando na valorização do preço da terra. Ou seja, mesmo antes das obras começarem, os povos indígenas e as comunidades tradicionais da região já sentem a pressão sobre os seus territórios e a floresta.
Em Audiência Pública realizada no dia 20 de fevereiro de 2018 na Câmara Municipal de Manicoré (AM) para tratar sobre o processo de reabertura das Rodovias BR-319 e AM-364, o agente do ICMBio também pontuou que “a largura da pista hoje existente é insuficiente para o trânsito de pessoas e cargas (mercadorias), e pode haver mais demanda para abertura de outras áreas, causando desmatamento e soterramento dos igarapés que alimentam o Rio Purus e o Rio Madeira”. Por fim, esclareceu que a BR tem um trânsito intenso de animais silvestres[3].
Com a omissão do Estado frente às demandas de ordenamento territorial e fiscalização na área de abrangência da BR-319, vemos avançar a ocupação dessas áreas para fins especulativos, o desmatamento ilegal e os conflitos agrários. Segundo o cacique Waldemiro Farias da Silva Apurinã, um ramal ilegal está sendo construído por fazendeiros para conectar Tapauá, no rio Purus, com a BR-319, com o uso de máquinas da prefeitura[4]. Isto ameaça as Terras Indígenas Apurinã do Igarapé São João e Apurinã do Igarapé Tauamirim, além do Parque Nacional Nascentes do Lago Jari. Como aponta o pesquisador Philip Fearnside: “O cacique relatou que os invasores não são indígenas e que os indígenas têm muito medo de ir a estas áreas, pois a derrubada de árvores é massiva mesmo dentro da Terra Indígena, colocando todas as aldeias em risco. Segundo o cacique, indígenas estão sendo ameaçados”[5].
Notas
A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas destaca o artigo 18, que dispõe que os povos indígenas têm o direito de participar da tomada de decisões sobre as questões que afetem seus direitos; o artigo 19, sobre o consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem; e o artigo 29, que dispõe sobre o direito à conservação e à proteção do meio ambiente e da capacidade produtiva de suas terras ou territórios e recursos. Todos têm sido violados na condução atual do projeto da BR-319.
A conclusão que emerge desse cenário aponta um agravamento das ameaças aos territórios indígenas e à biodiversidade. As táticas usadas na ditadura militar (1964-1985) vêm sendo replicadas nos dias atuais e uma verdadeira tragédia se anuncia com a repavimentação da BR-319. Mais do que nunca precisamos garantir o bem viver para as atuais e futuras gerações dos povos indígenas. Isso contribui na preservação dos distintos biomas, da biodiversidade, no equilíbrio climático, enfim, com o bem estar do planeta e da humanidade.
Vanildo Pereira da Silva Filho é advogado e atua como missionário indigenista junto ao Conselho Indigenista Missionário – CIMI e o Serviço Amazônico de Ação e Reflexão de Educação Socioambiental – SARES.
Paulo Tadeu Barausse é coordenador do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES) e membro do Comitê – REPAM Norte AM/RR.