Por Maurício Angelo | Observatório da Mineração
Foto: Reprodução / Observatório da Mineração
Como previsto, o Congresso repleto de deputados ruralistas e defensores da mineração acaba de aprovar, por 300 votos a 112, o Projeto de Lei 3729 que praticamente acaba com o licenciamento ambiental e abre o caminho para mais desastres como o de Mariana e de Brumadinho.
Esta é a análise das principais organizações da sociedade civil, pesquisadores, ambientalistas e deputados da oposição ao governo Bolsonaro.
Agora, barragens de rejeitos podem passar por “autolicenciamento”, uma aprovação automática, declarada pela própria mineradora, sem análise prévia e controle dos órgãos ambientais. “Esse PL é o estopim de novas tragédias”, cravou Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA).
A avaliação é de que a discussão vá parar no Supremo Tribunal Federal e as alterações no licenciamento sejam em geral questionadas na justiça, considerando as diversas inconstitucionalidades do texto do relator Neri Geller (Progressistas-MT), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.
“Quem pagará a conta da degradação são os cidadãos brasileiros, para sustentar a opção daqueles que querem o lucro fácil, sem qualquer preocupação com a proteção do meio ambiente e com as futuras gerações”, disse Suely Araújo, analista sênior de políticas públicas do Observatório do Clima.
“Sem licenciamento ambiental, crimes como os que ocorreram em Mariana e Brumadinho podem virar rotina. O PL 3729 foi colocado em pauta a toque de caixa, sem discussão com a sociedade”, disse a deputada mineira Áurea Carolina, do PSOL.
Nos moldes atuais, o licenciamento ambiental já é fortemente influenciado pelas empresas e facilmente burlado por mineradoras. Nos últimos anos, produzi algumas investigações que demostraram de forma cristalina como o lobby mineral afeta diretamente o licenciamento. Você pode ler alguns desses destaques neste fio do Twitter.
Em 2019, uma investigação que fiz em parceria com a Repórter Brasil mostrou que a Vale ditou regras de licenciamento ambiental para o governo de Minas Gerais em 2014 em reunião dentro da Secretaria de Meio Ambiente de MG (Semad).
Posteriormente, essas sugestões foram aceitas e incorporadas em leis que abriram caminho para a simplificação de processos e aceleração de licenciamentos, incluindo o caso de Brumadinho. A ata e o áudio da reunião obtidos por mim revelaram o teor das conversas. A Folha de São Paulo também publicou a matéria no online e no impresso.
Em outra investigação, em parceria com a Mongabay e a Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), mostrei que o governo de Minas Gerais avaliou a portas fechadas 25 projetos de alto risco da Vale. O objetivo era justamente facilitar o licenciamento ambiental e reduzir a fiscalização.
A análise é feita pela Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri), vinculada à Secretaria do Meio Ambiente. A criação do órgão não passou por grande debate e foi incluída dentro de uma lei aprovada em 2016. É a Suppri quem decide sobre esses licenciamentos expressos.
Entre esses projetos, novamente, estão Mariana e Brumadinho, além de diversas minas que foram interditadas pela justiça, como a de Brucutu, em São Gonçalo do Rio Abaixo (MG), uma das maiores da Vale. Uma versão em inglês da investigação foi publicada na OCCRP.
Além desses casos, gravíssimos, diversas mineradoras têm se beneficiado de licenciamentos simplificados, concedidos sem ouvir as comunidades afetadas e sem considerar impactos ambientais.
É o caso da canadense Belo Sun, no Pará, da Mineração Rio do Norte, controlada pela Vale e diversas multinacionais, também no Pará, da Indústrias Nucleares do Brasil (INB), na Bahia e várias outras.
Na votação dos destaques durante o dia de hoje na Câmara, os deputados negaram a retirada da mineração do PL 3729. Um destaque da oposição tentava manter a avaliação de barragens fora das novas normas. No entanto, segue valendo o entendimento de que “para licenciamentos de empreendimentos ou atividades minerárias de grande porte e/ou alto risco, até que seja promulgada lei específica, prevalecerão as disposições do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)”.
Somado à maior autonomia que estados e municípios terão a partir de agora, isso abre brechas como a que resultou no rompimento de Brumadinho. A Vale conseguiu rebaixar o risco atribuído a seu projeto em Brumadinho do nível 6 para nível 4 e reduzir o licenciamento para uma fase só. Pouco tempo depois, a barragem rompeu, matando 270 pessoas. O risco é que essas alterações se tornem mais comuns.
O Conama foi desmontado logo no início da gestão de Bolsonaro e Ricardo Salles. O Conselho foi extremamente reduzido, aumentando o poder do governo federal e minimizando a influência da sociedade civil. Com o Conama nas mãos, Salles, acusado de favorecer mineradora quando era secretário em SP, tenta mudar regras que favorecem o agronegócio, o que já foi parar no STF.
Além disso, Jair Bolsonaro e Paulo Guedes anunciaram recentemente uma “Política de Minerais Estratégicos” que, na prática, coloca na mão de um Comitê restrito, sem a participação de órgãos ambientais e da sociedade civil, a decisão sobre projetos considerados “fundamentais” para o Brasil e que receberão licenciamento acelerado.
“Irresponsabilidade, afronta à sociedade brasileira e nefasto”
Para Luiza Lima, assessora de políticas públicas do Greenpeace Brasil, a aprovação do PL 3729 é “uma afronta à sociedade brasileira”. “O país no caos em que se encontra e os deputados aprovam um projeto que vai gerar insegurança jurídica, ampliar a destruição das florestas e as ameaças aos povos indígenas, quilombolas e Unidades de Conservação”, disse Lima.
O PL restringe, enfraquece ou, em alguns casos, até extingue parte importante dos instrumentos de avaliação, prevenção e controle de impactos socioambientais de obras e atividades econômicas no país. “Trata-se da pior e mais radical proposta já elaborada no Congresso sobre o assunto e que, na prática, torna o licenciamento convencional uma exceção”, avalia notícia do ISA baseada nas reações ao projeto.
“É uma irresponsabilidade, depois de Mariana, depois de Brumadinho, depois das crescentes queimadas na Amazônia, do bioma do Pantanal, da desconstrução dos órgãos ambientais, nós votarmos um relatório desse tipo”, disse a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ).
Um relatório do Tribunal de Contas da União de maio de 2019 desmente o “argumento” de deputados ruralistas que acusam o licenciamento de “travar obras” no Brasil. De acordo com o TCU, das 14.403 obras paralisadas ou inacabadas Brasil, apenas 1% era decorrente de questões ambientais.
O relatório de Geller dispensa de licenciamento diversos tipos de atividades que geram impacto ambiental. O relatório ainda permite que estados e municípios adotem procedimentos próprios, abrindo caminho a uma disputa por quem terá a regra menos restritiva para atrair investimentos e empresas.
“O texto aprovado é tão nefasto que, de uma só vez, põe em risco a Amazônia e demais biomas e ainda pode resultar na proliferação de tragédias como as ocorridas em Mariana e Brumadinho e no total descontrole de todas as formas de poluição”, disse Maurício Guetta, do ISA.
Levantamento do Instituto Socioambiental aponta que, como o PL prevê licenciamento somente para territórios homologados, 297 Terras Indígenas ou 41% do total de áreas com processos de demarcação já abertos na Fundação Nacional do Índio (Funai) seriam desconsideradas para efeitos de avaliação, prevenção e compensação de impactos socioambientais de empreendimentos econômicos.
“Os órgãos ambientais não terão condições de se manifestar em tempo, pois o prazo é impraticável, além de estarem sucateados e silenciados. Os parlamentares aprovaram um desastre que precisa ser revertido no Senado, ou no STF”, afirmou Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.
Alessandro Molon, deputado do PSB-RJ, considerou um “desastre”, um “retrocesso vergonhoso” e “um duro ataque ao meio ambiente”. Para Talíria Petrone (PSOL-RJ), o PL permite novos crimes socioambientais, “atacando povos tradicionais para passar a boiada em nome dos interesses de desmatadores e poluidores”.
Para Nilto Tatto (PT-SP), esse PL vai contra mesmo as exigências de financiadores internacionais e atingirá em cheio o agronegócio, aquele que atua com responsabilidade ou não. A aprovação é “irresponsável e acaba com o país”, disse Tatto. Para Joenia Wapichana (Rede-RR), única deputada indígena do Congresso, “isso representa danos irreversíveis aos povos indígenas, ao meio ambiente e toda sociedade brasileira. O impacto será devastador”.
O PL também exclui da análise dos órgãos ambientais 87% dos mais de 1.770 processos de oficialização de quilombos já iniciados em âmbito federal, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“O licenciamento ambiental é um instrumento imprescindível para a avaliação, mitigação e compensação de impactos ambientais. Ele não emperra nada. O que emperra são estudos malfeitos, órgãos sucateados e interessados de má-fé”, alertou a procuradora da República Ana Carolina Haliuc Bragança.
A aprovação do PL 3729 é o primeiro da lista de prioridades entregue por Jair Bolsonaro a Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara. Lira recebeu doações de empresa de táxi aéreo que atende há décadas garimpeiros na Amazônia e até hoje voa em jatinhos da mesma empresa, conforme revelei aqui. Na fila, estão projetos altamente destrutivos, como o que libera a mineração em terras indígenas.
A tendência é que o PL 3729 seja aprovado no Senado e siga para a sanção presidencial.