Bahia

CERRADO-CAATINGA

As comunidades do Gerais e da Ressaca, localizadas no município de Piatã, na região da Chapada Diamantina, Bahia, vêm passando por um intenso processo de conflito com a empresa Hayashi Batatas, representante do setor do agronegócio na região. Gerais é uma pequena região em Piatã que dá nome também à comunidade tradicional de fundo de fecho de pasto, não reconhecida pelo Estado, que a habita; Ressaca é uma comunidade de agricultoras e agricultores familiares.

Piatã se encontra em um território de encontro entre Cerrado, Caatinga, Campos Rupestres e enclaves de Mata Atlântica, que abriga espécies raras e endêmicas da fauna e da flora, típicas da Chapada Diamantina. Além disso, as comunidades dessa localidade produzem cafés premiados, reconhecidos nacional e internacionalmente, e uma grande diversidade de outras culturas agrícolas. O modo de produção e de vida dessas comunidades garantiu sua a soberania alimentar e hídrica durante décadas no território.

A região abriga as nascentes da bacia hidrográfica do rio de Contas, protegidas, em parte, pela Área de Relevante Interesse Ecológico Nascentes do Rio de Contas, uma unidade de conservação com 4.771 hectares. Na região também nascem contribuintes de outras duas importantes bacias hidrográficas da Bahia – a Paraguaçu e a Paramirim, uma sub-bacia do Rio São Francisco. Esses rios, sem exceção, cruzam as regiões mais áridas do estado e cumprem a importante função social de abastecimento hídrico e de uso produtivo.

Contrapondo toda a sua importância ambiental e social, essa mesma região tem sido alvo do agronegócio para a expansão da fronteira agrícola nos modelos convencionais de produção com alta demanda hídrica. O motivo do conflito nas comunidades do Gerais e da Ressaca resulta desse avanço para a instalação de um grande empreendimento, voltado para o monocultivo de batatas, cultura intensiva no uso de água e agrotóxicos. A empresa pretende se instalar no território da comunidade do Gerais. Ressaca, logo abaixo, é a primeira comunidade diretamente afetada.

 

O conflito e a ameaça aos recursos hídricos

O conflito data desde a década de 1980, quando a empresa Hayashi iniciou um processo de compra e aquisição dos terrenos na comunidade do Gerais, onde os moradores relatam grilagem de terras, morte de animais – que eram criados soltos -, aparecimento de cercas, ameaças e mudança forçada no seu modo de vida tradicional, que tinha o uso comum das áreas geraizeiras – daí o nome Gerais. Atualmente estima-se que a Hayashi, junto com outras duas empresas do agronegócio (Progresso e Trebesque), concentram quase 75% da terra agricultável no Gerais, cerca de 7 mil hectares de terra.

Em 2013, esse conflito se acirrou, quando a Hayashi, em conjunto com a Bagisa (empresa do agronegócio que posteriormente venderia suas terras para a Trebesque), iniciou o desmatamento no leito do riacho do Gritador, na comunidade do Gerais, para a construção de uma barragem para irrigação do cultivo de batatas[1]. A empresa usou como prerrogativa o decreto nº 14.389 de 2013, que isentava, na época, o licenciamento ambiental para empreendimentos de combate à seca, para uso humano, devido ao grave período de estiagem que o estado enfrentava naquele momento.

Durante um período de 25 dias, as obras foram executadas e 6 comunidades – Baixo Fundo, Vieira, Falhado, Tijuco, Capão da Ponte e parte da Ressaca –, aproximadamente 30 famílias, começaram a receber água com lama na torneira de suas casas. Diante dessa situação, foi feita uma denúncia ao Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), órgão ambiental da Bahia, que, após fiscalização no local, embargou a obra por falta de autorização de supressão de vegetação, não permitida no decreto. A área desmatada nunca mais retornou ao estágio inicial, bem como a vazão do rio naquela localidade[2].

Em 2020, mais uma vez o conflito tornou a vir à tona, quando em 19 de outubro, o Inema emitiu duas portarias (nº 21.671 e 21.672), autorizando a Hayashi a suprimir a vegetação de 958,33 hectares de mata nativa na Fazenda Piabas, localizada no território da comunidade do Gerais.

Três dias antes da publicação dessas portarias, no dia 16 de outubro, ocorreu um incêndio de grandes proporções, que teve início em uma propriedade vizinha à Fazenda Piabas pertencente à Trebesque. Essa empresa abrigou em sua propriedade os tratores e caminhões que foram usados pela Hayashi para o desmatamento após a autorização, pelo Inema, para supressão de mata nativa na fazenda Piabas.

O incêndio se iniciou aproximadamente às 11 horas da manhã e rapidamente ganhou grandes proporções. A brigada local Altitude Ambiental, composta por moradores de Piatã e que atua de forma voluntária e autônoma no município, passou quase 18 horas seguidas combatendo o fogo, evitando que ganhasse maiores proporções. Do contrário, uma grande área da comunidade do Gerais e região teria sido queimada, inclusive a fazenda Piabas, da Hayashi.

Na portaria concedida à Hayashi, uma das condicionantes expressavam que a supressão de vegetação não poderia ser feita por meio de correntão ou fogo. Moradores das comunidades têm grande desconfiança de que quem iniciou esse incêndio criminoso foi a própria Hayashi, para acelerar o processo de desmatamento, contando que o incêndio se espalharia por todo o território da comunidade do Gerais. Por ter iniciado na propriedade vizinha, a Hayashi não perderia as devidas licenças por não cumprir com as condicionantes.

Apesar das denúncias feitas, nenhum inquérito foi instaurado sobre o caso. Não foi possível levantar provas que comprovassem a efetiva ligação do incêndio com a Hayashi.

Notas

Sobre o conflito em 2013 ver “Agronegócio ameaça nascentes do Rio das Contas, disponível aqui.

Para ver o abaixo-assinado organizado pela comunidade de Piatã, ver aqui.

Para ver a ata da reunião do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio de Contas, com o número dos processos referentes a outorgas e barragem, além de citação sobre o embargo pelo INEMA, ver aqui.

Comunidades seguem em risco

Neste momento, as portarias estão temporariamente suspensas, em decorrência de uma liminar concedida no âmbito da Justiça Estadual pela Vara Única da Comarcade Comarca de Piatã, fruto de uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Estadual (MPE). Essa decisão foi reafirmada em segunda instância, pelo desembargador Maurício Kertzman Sporer, da 2a Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia[3], após a empresa recorrer. Mas, por algum motivo oculto, o desembargador de segunda instância pediu para sair do caso, alegando que era suspeito para julgar o mesmo. Há uma expectativa de que o próximo a assumir possa ter um entendimento que beneficie o agronegócio e, assim, voltar a dar validade às portarias autorizativas de supressão de vegetação no Gerais de Piatã.

Apesar das observações feitas pelo Ministério Público, o Inema tem atuado favoravelmente à empresa durante o litígio, descumprindo sua função que deveria se pautar pelo princípio da precaução e pelo cumprimento da legislação ambiental.

O projeto proposto pelo agronegócio para a região do Gerais coloca em risco as formas de vida dessas comunidades, além de todas as que estão à jusante do rio de Contas, e também de seus frágeis ecossistemas. A disponibilidade da água, seja em quantidade ou qualidade, estará seriamente comprometida, seja pela exploração intensa dos cursos d’água, seja pelo uso de agrotóxicos. Esse mesmo modelo de agricultura e “desenvolvimento” levou, nos municípios de Mucugê e Ibicoara, também na Bahia, a uma drástica redução da agricultura familiar, elevada concentração de renda e terras, bem como à significativa redução da disponibilidade hídrica nessas localidades. As comunidades do Gerais e da Ressaca temem que aconteça o mesmo.

Por outro lado, o município de Piatã possui uma grande agrosociobiodiversidade, que, se conservada, pode apontar para uma outra forma de viver e de se relacionar nos territórios. Berço de nascentes de 3 bacias hidrográficas, com suas cadeias de serras e montanhas e um cenário de rara beleza cênica, o município mais alto da Bahia abriga dezenas de comunidades tradicionais – quilombolas, campesinas, indígenas e geraizeiras – que fazem da agricultura familiar a sua principal fonte geradora de emprego, renda e soberania, cujas tradições do campo, passadas de geração em geração, permitiram a sua existência por séculos. No entanto, a atual política desenvolvimentista do estado da Bahia, apoiando o avanço das eólicas, da mineração e do agronegócio em Piatã, tem colocado todas essas comunidades, seus saberes e seus territórios em grave risco de existência. O fogo é sempre só o começo de uma temerosa história.

Notas

Processo: AGRAVO DE INSTRUMENTO n. 8001514-02.2021.8.05.0000.

Frente Socioambiental de Piatã