Presidência e parlamento a serviço dos grileiros: legislar para grilar

Por Joice Bonfim e Larissa Packer

Os caminhos e descaminhos traçados pela construção histórica da legislação fundiária brasileira referente às terras públicas e sua interface com a questão ambiental acabam refletindo os interesses e as principais questões em jogo no que diz respeito à apropriação privada – e ilegal – da terra e da natureza. Não é à toa que o regime jurídico da propriedade de terras no Brasil acompanha – e legitima – a progressiva exclusão de todos os outros (não proprietários) do acesso à terra e dos meios de produção da vida, em diversos momentos da história brasileira. Da colonização europeia, marcada pelo genocídio e escravização dos povos negros e indígenas – não sujeitos de direito capazes de ser titulares de direito de propriedade – , até o momento mais atual, marcado por uma ofensiva privatização e mercantilização de terras públicas e da natureza, o regime jurídico da propriedade privada tem seu significado e abrangência redefinidos para cumprir com o seu papel de despossessão dos povos e captura dos comuns em exclusão das presentes e futuras gerações.

A linha do tempo apresentada a seguir demonstra que o processo histórico de ocupação de terras no Brasil se iniciou a partir da imposição da lógica de apropriação privada e da expropriação de territórios tradicionais originários. O longo período de capitanias hereditárias e sesmarias, que culminaram na edição da primeira lei fundiária brasileira, fortaleceram esta lógica. Foi nesta perspectiva que a Lei de Terras de 1850 foi editada, excluindo e expropriando povos de seus territórios e se sustentando a partir de concepções racistas que fundamentam a hegemonia branca como classe proprietária de terras no país. Com o objetivo de transferir as terras para o regime privado, a Lei de Terras trouxe alguns critérios para fazer isso de forma minimamente “regulada”, priorizando, em tese, a legitimação das ocupações de terras produtivas, e estabeleceu uma premissa fundamental: as terras brasileiras têm origem pública.

Acontece que nem mesmo os critérios facilitadores estabelecidos pela Lei de Terras foram cumpridos e as elites fundiárias, até os dias atuais, não conseguiram dar conta de fazer o processo regular de transferência da propriedade pública para o patrimônio particular. Isso explica o chamado “caos fundiário” brasileiro, marcado tanto pela presença de títulos de propriedade antigos, mas absolutamente viciados, que não comprovam o destaque do patrimônio público das terras, quanto por títulos de grandes extensões rurais, mais recentes, criados ou fraudados em cartórios e gabinetes, muitas vezes com uso da violência, muitas delas legitimadas pelo Poder Judiciário. A realidade é que se formos aprofundar a análise dos títulos das grandes propriedades de terras no Brasil, na imensa maioria das vezes, encontraremos vícios que nos remetem à ação orquestrada dos setores públicos e privados para a apropriação privada e ilegal de terras públicas. A história de apropriação ilegal da terra também se confunde com a própria apropriação e restrição do espaço público por grupos de poder em gabinetes fechados.

A partir da década de 1960, período que representa um dos movimentos cruciais de expansão de fronteiras agrícolas para as regiões da Amazônia e Cerrado, sucessivas legislações têm sido gestadas a fim de tentar convalidar títulos irregulares, facilitar a “criação” de novos títulos ou de fomentar a implementação de políticas que promovem a conversão de terras públicas – ou de comunidades tradicionais – em terras privadas. O Estatuto da Terra, editado em 1964, a Lei que trata sobre as ações discriminatórias, e as diversas legislações estaduais criadas a partir deste período, em que pesem tragam alguns critérios e limitações para a transferência da terra, caminham, de maneira geral, como instrumento de legitimação de apropriações ilegais.

Este processo se intensifica a partir da década de 2000, com o “boom das commodities”, fenômeno caracterizado pela emergência e consolidação da participação majoritária de produtos primários, especialmente grãos e minérios, nas exportações brasileiras, associada à alta dos preços das commodities no mercado mundial, o que também intensificou a procura por terras nos países exportadores e o aquecimento do mercado e especulação fundiária. É neste cenário que, contrariando a Constituição Federal, em 2009 é editada a Lei 11.952, também conhecida como “Lei da Grilagem”, que criou o Programa Terra Legal, acelerando a regularização de ocupações irregulares ainda mais recentes na Amazônia Legal de até 1.500 hectares. Logo em seguida, em 2012, é publicado o Novo Código Florestal, que regularizou ambientalmente os imóveis rurais a partir da anistia ou perdão aos infratores ambientais, desobrigados de recompor a Reserva Legal e Área de Preservação Permanente (APP), como também acaba por autorizar a legalização de novos desmatamentos para o processo de expansão das fronteiras agrícolas. Além disso, abre as portas pela primeira vez para a transferência da vegetação nativa do regime dos bens comuns para a propriedade privada com a criação da Cota de Reserva Ambiental (CRA) e sua negociação obrigatória em bolsas de valores.

Apesar da história fundiária brasileira demonstrar a estreita relação entre as legislações de terras, a acumulação de riqueza por uma reduzida elite branca proprietária e a consequente promoção de violências no campo, os últimos cinco anos evidenciaram como nunca esta correlação, intensificada pelo contexto de corrida global por terras e de interesse, cada vez maior, de grandes corporações financeiras por um estoque estratégico de garantia de dívidas.

O golpe político institucional que decretou o “impeachment” da ex-presidenta Dilma Roussef, com a ascensão do governo de exceção de Michel Temer e posteriormente com a eleição de Jair Bolsonaro, instalou uma conjuntura política ainda mais propícia à tramitação acelerada e sem consulta à sociedade de projetos privatizantes e desnacionalizadores da terra, combinados com uma série de medidas legais em apoio às demandas do setor patronal rural e do capital internacional. Não é exagero dizer que as alterações legislativas promovidas neste curto período e as que ainda estão sendo gestadas são mais drásticas e mais devastadoras do que aquelas ocorridas nos últimos quinhentos anos. Desde a aprovação da Lei 13.465/17 (MP 759/16), também apelidada de “Lei da Grilagem”, – que autoriza uma massiva transferência da propriedade pública e devoluta federal para grandes proprietários de terra -, as diversas alterações legislativas apresentadas na linha do tempo a partir de 2016 indicam uma verdadeira ofensiva voltada para a apropriação privada de terras e da natureza e para a garantia de segurança jurídica aos proprietários de terras, produtores rurais e investidores.

O modo de uso e ocupação do solo entre campo e cidade, a concentração de terra e recursos naturais, a destruição massiva de ecossistemas e a crescente homogeneização das paisagens têm sido apontadas como uma das principais causas estruturais para a eclosão de epidemias e sua acelerada dispersão em pandemias. O novo desenho da malha fundiária brasileira permitida pela Lei 13.465/17 e as demais legislações mencionadas na linha do tempo prometem uma concentração da terra rural sem precedentes, com a decorrente ampliação do desmatamento e destruição de habitats e a incorporação do uso e ocupação do solo por este modo de produção industrial de commodities, culminando com uma crescente expulsão de milhares de agricultores, povos e comunidades para as periferias urbanas. Produção industrial do espaço rural e urbano que se coloca como um caldeirão para futuras pandemias e crises sanitárias.

Não temos dúvidas de que um freio a esta locomotiva legislativa precisa ser construído em uma articulação solidária entre os povos desde os territórios até o nível internacional. Por um lado, trabalhadores do Norte Global que veem suas contribuições aos fundos de pensão para a aposentadoria serem destinadas à compra ilegal de terras, com consequente expulsão dos povos do Sul Global, têm o poder de vetar e exigir a retirada destes investimentos destrutivos. Por outro lado, os recursos essenciais à vida digna para a presente e futuras gerações, como biodiversidade e água, ainda estão sob a posse ancestral dos povos tradicionais e em espaços públicos pertencentes a toda a sociedade. Portanto, dar respostas adequadas aos desafios impostos pela massiva privatização dos bens comuns, da terra e dos recursos naturais passa necessariamente pelos modos de produção da vida e estratégias de sobrevivência promovidas e implementadas pelos diversos povos, comunidades e movimentos que formam a diversidade e promovem a biodiversidade do campo brasileiro e, que, não por acaso, constituem o público prioritário para a destinação das terras públicas brasileiras. Seja pela dívida histórica, seja por determinação constitucional ou medida estrutural para conter o aprofundamento da sobreposição de crises, principalmente ecológica e sanitária, mais do nunca se faz necessário um levante popular nacional e solidariedade internacional em defesa dos bens públicos e comuns dos povos, pela destinação prioritária das terras brasileiras para a efetivação dos direitos territoriais dos povos do campo. O remédio contra futuras pandemias está justamente na capacidade das sociedades promoverem medidas estruturais de desconcentração e distribuição da terra para quem nela quer trabalhar, na proteção da biodiversidade, dos habitats e dos modos de produção da vida associados. Isto começa com um simples passo: a unidade da luta da classe trabalhadora e dos povos contra os projetos de regularização fundiária de mercado.

Antecedentes do regime fundiário vigente: da Lei de Terras de 1850 à Constituição de 1988

Flexibilizações que promovem a legalização da grilagem, a impunidade e anistia de crimes ambientais e o desmonte de direitos

Referências

AATR, ABRA, CPT, GRAIN. Caderno “Do golpe político ao golpe fundiário”, 2020.

AATR. Legalizando o Ilegal, 2020.

Larissa Packer. Elementos para se compreender o contexto socioambiental e fundiário brasileiro: Agronegócio, desmatamento e caldeirão de futuras pandemias (mimeo). 03.02.2021.

Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ e Terra de Direitos. Racismo e violência contra quilombos no Brasil. 2018.

Observatório do Clima. Passando a Boiada. O segundo ano de desmonte ambiental sob Jair Bolsonaro, janeiro de 2021.

Britaldo Soares-Filho; Raoni Rajão; Marcia Macedo; Arnaldo Carneiro; William Costa; Michael Coe; Hermann Rodrigues; Ane Alencar. Cracking Brazil’s Forest Code. Science 25 Apr 2014:Vol. 344, Issue 6182, pp. 363-364.

Joice Bonfim é advogada popular, coordenadora da AATR e mestra em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA/UFRRJ.

Larissa Packer é advogada socioambiental, mestra em Filosofia do Direito pela UFPR, membro da equipe América Latina do Grain.