Saberes que vêm de longe: usos tradicionais do fogo no Cerrado e Amazônia
Por Angela May Steward, Antônio Veríssimo da Conceição, Fábio Pacheco, Franciléia Paula de Castro, Geraldo Mosimann da Silva e Paulo Rogério Gonçalves
Os povos indígenas e comunidades tradicionais do Cerrado e Amazônia têm consciência que seus destinos estão entrelaçados com o da natureza. Baseado em um profundo conhecimento sobre os ecossistemas locais, há séculos estes povos construíram complexos sistemas de produção, compostos por roças, criação animal e extrativismo, que garantem a essas populações uma produtividade adequada à reprodução de seus modos de vida. Ao mesmo tempo, promovem a conservação e o incremento da biodiversidade que manejam. Assim, constroem territórios sustentáveis que se mantêm vivos e produtivos ao longo do tempo[1], o que pode ser facilmente constatado por meio do exame de séries históricas de imagens de satélite ou visitas às áreas.
O fogo é um componente presente em muitas práticas utilizadas nestes sistemas produtivos, manejado de forma racional e integrada aos modos de vida destes povos e comunidades há diversas gerações. Logo, as acusações de que povos indígenas e comunidades tradicionais fazem uso do fogo de forma indiscriminada e descontrolada são levianas e infundadas, constituindo uma cortina de fumaça para acobertar de onde de fato se origina grande parte dos incêndios florestais.
O fogo também é empregado em grandes propriedades do agronegócio, em geral, sem conhecimento acumulado sobre lugares específicos, muito menos compromisso ético para manejar esse importante elemento da natureza. Na maioria dos casos, a prática, associada direta ou indiretamente ao desmatamento, visa uniformizar a área para a implantação ou limpeza de pastagens, ou como base para a instalação de monocultivos. Além disso, o fogo também é usado para atingir áreas protegidas, tais como as Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e de outras comunidades tradicionais, Reservas Extrativistas (Resex) e Assentamentos de Reforma Agrária, como forma de ameaçar estas populações e se apropriar de suas terras.
Notas
Em perspectiva histórica de séculos, a ação agroextrativista de antigos povos indígenas gerou paisagens antrópicas conhecidas como Terras Pretas Arqueológicas, com solos de alta fertilidade estável e composição florística distinta das áreas adjacentes. Ver: Teixeira, W.G., Kern, D.C., Madari, B.E., Lima, H.N. e Woods, W. As terras pretas de índio da Amazônia: sua caracterização e uso deste conhecimento na criação de novas áreas. Manaus: Embrapa Amazônia Ocidental, 2009.
Roças itinerantes na paisagem agroflorestal
No Cerrado e Amazônia a produção de alimentos se dá principalmente pelas “roças de toco”. Trata-se de um sistema de cultivo[2] baseado na rotação entre etapas agrícolas (quando o solo é preparado e cultivado e a produção colhida) e períodos de pousio[3] (“descanso” da terra) de longa duração (10 a 20 anos), constituindo parte do manejo agroflorestal de longo prazo da paisagem. Isto possibilita a recomposição da mata, associada a um conjunto de práticas de manejo de uso racional do fogo.
Na etapa agrícola, o uso do fogo acelera o processo de mineralização da biomassa[4], possibilitando a correção da acidez do solo pelas cinzas e promovendo a disponibilização de nutrientes que foram acumulados pela vegetação arbórea secundária (vegetação mais alta que cresceu durante o pousio) para os cultivos que serão realizados, propiciando boas colheitas.
Desde que o pousio tenha duração suficiente para produzir um volume de biomassa adequado ao cultivo planejado, o sistema se pereniza[5]. Ou seja, o tempo de pousio é chave nesse processo produtivo. Um detalhe importante é que para a implantação das “roças de toco” é necessária a preparação de aceiros[6], para evitar que o fogo se alastre, uma prática implementada com cuidado e sabedoria pelas comunidades para proteger seus territórios.
Existe uma grande diversidade de “roças de toco”, com cada ecossistema possibilitando um tipo de roça com características específicas, que recebem diferentes denominações locais. Porém, todas as variações de roças de toco compartilham a feição de serem uma prática itinerante, de movimento. A destinação das áreas das roças para o pousio possibilita que o ecossistema seja manejado de forma lenta e gradual, o que é determinado por suas próprias respostas naturais. Portanto, está diretamente ligado ao uso do território pelas comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Se o território é fragmentado, a realização de práticas tradicionais de manejo da paisagem fica comprometida.
Notas
Sá, T.D.A., Kato, O.R., Carvalho, C.J.R. e Figueiredo, R.O. Queimar ou não queimar? De como produzir na Amazônia sem queimar. Revista USP, São Paulo, n. 72, p. 90-97, dezembro/fevereiro 2006-2007.
Pousio é o descanso que se dá a uma terra cultivada por meio da interrupção temporária de atividades ou usos agrícolas, pecuários ou silviculturais, para possibilitar a recuperação da capacidade de uso do solo.
Biomassa é toda a matéria orgânica, de origem vegetal ou animal. A mineralização da biomassa envolve a liberação de seus elementos químicos, pela combustão do material durante a queimada, seguido pela ação de microrganismos presentes no ambiente. Assim, os compostos químicos são disponibilizados na forma de nutrientes minerais para as plantas.
Mazoyer, M. e Roudart, L. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Unesp; Brasília: NEAD, 2010.
Aceiro é o nome técnico dado à faixa de terreno livre de vegetação, preparada com a finalidade de quebrar a continuidade de material combustível, dificultando assim a propagação do fogo.
Manejo tradicional do fogo nas “roças de toco” em diversos agroecossistemas
No Cerrado, entre as denominações de “roças de toco” específicas aos diversos agroecossistemas locais, temos, por exemplo, a depender da região, as “roças de toco de capão” (no capão – áreas de mata seca, mais alta), as “roças de vazante” (roças nas várzeas, áreas que em parte do ano ficam úmidas, mas onde a água não escorre) e as “roças de esgoto” (nas veredas, áreas de mata de galeria inundáveis). Estudos realizados[7] em “roças de esgoto”, que são praticadas em veredas em um sistema de microdrenagem, demonstram que estas garantem a sobrevivência de muitas plantas cultivadas de reprodução vegetativa durante a seca e que podem ser estocadas e transplantadas para outras roças, tais como mandioca e inhame. Cada roça é cultivada intensivamente por um período que varia de 4 a 20 anos. Os agricultores voltam a fazer roça no mesmo lugar depois de um período de pousio que varia entre 10 a 15 anos, o que possibilita a utilização de espaço produtivo familiar continuamente durante várias décadas. Ainda, devido ao pequeno tamanho das roças de esgoto (em média, 0,4 ha) e pelo fato de que estas parcelas estão necessariamente localizadas abaixo da área de recarga das veredas, estas não afetam a quantidade e a percolação da água, uma vez que os canais de drenagem apenas desviam a água, e esta segue até o curso d’água principal. Também relevante, a prática do fogo em veredas para estabelecer roças não leva ao desmatamento em escala de paisagem. Ao contrário, favorece a cobertura vegetal arbórea após o abandono da atividade agrícola.
No Pantanal – a maior planície alagada do planeta, que tem o cerrado (savana) como formação ecossistêmica dominante[8] – ao longo dos séculos, o manejo da água e do fogo tem garantido a conservação dinâmica dos sistemas agrícolas de comunidades tradicionais e quilombolas. Em sua porção mato-grossense, na Baixada Cuiabana, as roças de toco realizadas por essas comunidades constituem práticas importantes para a ciclagem de nutrientes e o manejo ecológico do ecossistema pantaneiro. Por exemplo, durante os “Muxiruns” (mutirão) realizados no Quilombo Morrinhos, em Poconé (MT), a roça de toco possibilita o manejo natural do ecossistema, sem a utilização de insumos químicos (agrotóxicos e fertilizantes). O uso racional do fogo pela técnica da coivara[9] garante a manutenção da cobertura vegetal do solo e da biodiversidade local, e o estabelecimento de plantios diversificados. Os recursos hídricos existentes são mantidos, bem como suas áreas de proteção.
Na Amazônia, o manejo do fogo é utilizado por povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares como um importante instrumento de gestão integrada de seus sistemas agrícolas tradicionais. Assim como no Cerrado, os sistemas amazônicos também envolvem as fases de conversão florestal, plantio e pousio, sendo conhecidos por muitos nomes, incluindo: agricultura de coivara, agricultura de corte-e-queima, agricultura itinerante e agricultura migratória.
As paisagens que emergem da agricultura de coivara são compostas por um mosaico de agroecossistemas incluindo as roças que abrigam culturas de ciclo médio e curto, capoeiras em diferentes estágios de regeneração, das quais algumas são manejadas para formar sistemas agroflorestais tradicionais, chamados de sítios ou quintais. Estas áreas contêm uma diversidade de frutíferas, plantas medicinais e culinárias, incluindo hortaliças.
O uso e manejo do fogo integrado aos sistemas da agricultura de coivara são práticas tradicionais comuns realizadas por diversos povos indígenas e comunidades tradicionais e agriculturas familiares na região amazônica. Tais práticas são caracterizadas pela diversidade – em termos do modo pelo qual os grupos se organizam para trabalhar, os tipos de ambientes utilizados para cultivo, além das diversas cosmovisões que guiam as práticas e os respectivos saberes associados. Mesmo reconhecendo esta diversidade, é possível delinear um roteiro geral para as práticas envolvidas em sistemas agrícolas tradicionais na Amazônia.
A seguir são apresentadas as etapas envolvidas na agricultura de coivara com base em sistemas encontrados na Amazônia Central, em ambientes de terra firme e várzea sazonal, por exemplo, com um destaque para o uso e manejo do fogo. O objetivo das roças é a subsistência das famílias, o que orienta a lógica da produção, que é familiar.
- Primeiro os agricultores fazem a identificação da área a ser cultivada, considerando a disponibilidade para cada família. Em seguida, é realizada a limpeza de vegetação primária ou secundária, sendo o ato de “roçar”, também chamado de “roçagem”. Nas áreas de várzea esta fase ocorre de maio a junho, e de junho a julho nas áreas de terra firme. Nos dois ambientes, a área aberta inclui um aceiro, que serve como uma quebra de fogo e que também permite a entrada da luz solar. É importante salientar que as áreas de roças abertas nas florestas e capoeiras tendem a ser pequenas, geralmente menores do que um hectare.
- Nas áreas de terra firme, após a abertura das roças, a biomassa oriunda da roçagem vegetal é deixada para secar por até 2 meses. Muitas vezes, os materiais são empilhados e separados para facilitar uma boa (completa) queimada da área. Os agricultores que participam na fase de queimada são sempre indivíduos experientes, que aprendem o ofício através da convivência. Muito cuidado é tomado para garantir que o fogo se mantenha dentro dos limites da roça. Geralmente a queima é conduzida por pelo menos duas pessoas, com o fogo sendo ateado em pontos diferentes e os agricultores avançando em linhas paralelas. Alguns agricultores preferem acender o topo das pilhas de biomassa, de modo que o fogo se espalhe a partir destes pontos, queimando a área completamente. Variações destas técnicas são observadas pela Amazônia, conforme as condições locais, disponibilidade de mão-de-obra e as preferências dos agricultores.
- Após a queima inicial, os agricultores frequentemente realizam a coivara - que se refere à prática de empilhar ramos, galhos e troncos não consumidos inicialmente e queimá-los novamente. Posteriormente, as cinzas são espalhadas pela roça. É importante notar que nos ambientes de várzea o uso do fogo é mais restrito. Como as cheias anuais inundam os solos, deixando nutrientes, e as águas limpam as restingas – as áreas mais altas nos ambientes de várzea, que são cultivadas – a necessidade do fogo para nutrir os solos e criar espaço para os cultivos é menor. Em alguns casos, os agricultores só precisam queimar áreas para o estabelecimento inicial das roças, podendo manter a mesma parcela sob cultivo por até 10 anos.
Após a fase da queimada, os agricultores plantam mandioca e outros cultivos que são cuidados conforme as suas necessidades específicas. As áreas de roça geralmente são utilizadas por dois a quatro anos, retornando depois ao pousio. Alternativamente, estas áreas podem ser continuamente manejadas, tornando-se sistemas agroflorestais mais permanentes, contribuindo para uma paisagem dinâmica e diversificada.
Notas
Borges, S.L., Eloy, L., Schmidt, I.B., Barradas, A.C.S e Santos, I.A. Manejo do fogo em veredas: novas perspectivas a partir dos sistemas agrícolas tradicionais no Jalapão. Ambiente & Sociedade n São Paulo v. XIX, n. 3 n p. 275-300 n jul.-set. 2016.
Porto-Gonçalves, C.W. Dos Cerrados e de suas riquezas: de saberes vernaculares e de conhecimento científico. Goiânia e Rio de Janeiro: CPT e FASE, 2019, p. 18.
O termo coivara refere-se à prática de empilhar ramos, galhos e troncos não consumidos na queima inicial da roça, para queimá-los novamente. Ver: Neves, W.; Murrieta, R.S.S.; Cristina, A.; et al. Coivara: cultivo itinerante na floresta tropical. Ciência hoje, v. 50, n. 297, p. 26–30, 2012.
Outros usos tradicionais do fogo: sistemas de criação de gado, extrativismo e controle de incêndios
No Cerrado, o fogo é utilizado de diversas formas além do cultivo de alimentos, envolvendo também o extrativismo, a criação animal e o manejo ambiental. Quanto ao agroextrativismo, o uso tradicional do fogo é fundamental no manejo de áreas produtivas, favorecendo, por exemplo, a rebrota do capim dourado, no Jalapão, no Tocantins, e no Oeste da Bahia; e flores sempre-vivas, na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais.
Além disso, nas chapadas e serras que cobrem o Cerrado do Norte de Minas Gerais ao Sul do Maranhão, passando pelo Oeste da Bahia, Sul do Piauí e Nordeste do Tocantins, os sistemas de criação de gado a solta são realizados pelo manejo das pastagens nativas em diferentes altitudes[10] e têm no uso do fogo um elemento importante. Esses sistemas conciliam a utilização das veredas (nos fundos de vale) durante a época seca do ano, o que é denominado em muitas regiões como “refrigero”, e a utilização dos “Gerais” (chapadas) durante a época das chuvas. Esse sistema de criação animal necessita realizar a queima dos pastos nativos para a eliminação da pastagem seca e a indução de uma rebrota de melhor qualidade nutricional. Segundo estudos da EMBRAPA[11], a queima controlada com a finalidade de melhorar a qualidade da forragem oferecida aos animais parece ser a única ferramenta viável para o manejo das pastagens nativas.
Notas
Gonçalves, A.; Porto-Gonçalves, C.W.; Aguiar, D.; Monteiro, F.T.; Lopes, H.; Malerba, J.; Correia, M.; Gonçalves, P.R.; Britto, S. A Vida entre as Chapadas e os Vales: Comunidades Geraizeiras, Fechos de pasto e Apanhadoras de Flores Sempre Viva. In: Aguiar, D.; Lopes, H. (Org.). Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade. 1ed. Rio de Janeiro: Campanha em Defesa do Cerrado e ActionAid Brasil, 2020, p. 32-65.
Mochiutti, S., Meirelles, P.R.L. e Souza Filho, A.P.S. Queima racional das pastagens nativas de Cerrado do Amapá. Macapá, Embrapa-CPAF-Amapá, 2001. (Embrapa-CPAF-Amapá. Comunicado Técnico, 74).
Manejo Integrado do Fogo. Projeto Cerrado-Jalapão.
No Cerrado, o fogo é utilizado de diversas formas além do cultivo de alimentos, envolvendo também o extrativismo, a criação animal e o manejo ambiental. Os povos indígenas, que manejam o fogo há mais tempo, são detentores de conhecimentos profundos sobre os seus distintos modos de emprego. Uma das modalidades de uso do fogo é a sua utilização para a limpeza e controle de animais peçonhentos e de espinhos, em áreas de caminhos e em acessos para caçadas. Outra modalidade é o uso do fogo de forma preventiva e de controle, visando evitar a propagação de grandes incêndios, principalmente no tempo da estiagem, que ocorre de julho a setembro. A ausência de fogo manejado no Cerrado na época certa pode implicar no acúmulo de biomassa, o que facilita a propagação de incêndios, que podem alcançar efeitos devastadores na estação seca.
Todavia, o manejo da biomassa no Cerrado foi criminalizado durante muito tempo. Recentemente, foram criados programas formais de Manejo Integrado do Fogo (MIF)[12], após décadas de reivindicação dos povos indígenas e comunidades tradicionais aos governos. Estes programas definem que o MIF é um assunto complexo que abrange vários aspectos, desde as características ecológicas dos diversos biomas até o seu uso tradicional com objetivos distintos, por diferentes povos e comunidades. O Manejo Integrado do Fogo busca um equilíbrio entre estes diversos aspectos, com enfoque na conservação da biodiversidade e proteção do clima, além de oferecer benefícios às comunidades locais.
O MIF tem sido aplicado com êxito pelos Brigadistas Indígenas do IBAMA/Prev-Fogo nas Terras Indígenas localizadas no Cerrado e em algumas áreas da Amazônia, na prevenção aos incêndios florestais e proteção das matas ciliares, nascentes, roças, aldeias, pastagens, cercas, redes de energia, áreas de coleta e de reprodução animal nas terras indígenas. Por exemplo, desde 2015 a queima controlada de roças nas Terras Indígenas do Estado do Tocantins vem sendo realizada por Brigadistas Indígenas do IBAMA/Prev-Fogo.
De forma geral, o manejo da biomassa pelos povos indígenas no Cerrado segue o seguinte roteiro, embasado num profundo conhecimento sobre os seus territórios e ecossistemas locais:
- Nos meses de maio e junho é realizada a queima controlada de determinados locais de campos para diminuir a massa de matéria orgânica acumulada, formada por folhas, galhos, cipós, gramíneas, palhas e troncos de árvores mortas. O fogo é de baixíssima intensidade e a queima acontece antes da florada das espécies frutíferas do Cerrado. Esse procedimento pode ser efetivado a cada dois anos e sempre acontece nos planaltos onde o capim e gramíneas secam mais rápido. Nesse período, o grande volume de água acumulada no solo durante o inverno não secou totalmente, as planícies ainda estão úmidas e o interior das florestas ainda está encharcado, não oferecendo condições para o fogo se alastrar e se propagar floresta adentro. Essas condições ambientais impedem que o fogo se espalhe e avance sobre as florestas, cocais, matas ciliares e nascentes.
- Caso não seja realizada essa “queima preventiva” para redução da massa de matéria combustível, na época de estiagem qualquer foco de incêndio pode se alastrar rapidamente, atingindo extensas áreas de florestas.
- A época mais seca e crítica do ano com alto risco de incêndios no Cerrado, no período de agosto a outubro, coincide com a florada do pequi, caju, mangaba, buriti, bacuri, bacaba, oiti, ipê e outros. É nesse período também que ocorre a gestação de espécies como caititu, paca, cutia, quati, tamanduá, raposa, onça, anta e outros mamíferos, e muitas aves pequenas, de tamanho médio e grande porte, como a ema, estão chocando seus ovos ou alimentando seus filhotes pequenos. Quando um incêndio de grandes proporções acontece nesse período os danos materiais e prejuízos ambientais são incalculáveis para a flora e fauna. Os animais sobreviventes ficam sem abrigo e sem alimentação, causando a diminuição ou desaparecimento de populações de muitas espécies.
Um saber de convivência com os ecossistemas que persiste apesar dos ataques
Acusações recentes apontando para o uso do fogo pelos agricultores familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais como culpados pelo aumento dos incêndios florestais amazônicos representam uma continuidade das ideias preconceituosas referentes à agricultura de coivara, que sempre foi construída como “primitiva”, desde uma perspectiva desenvolvimentista. Por mais de cinco décadas, agentes do Estado têm recomendado a substituição da agricultura de coivara por algo mais “moderno”, sem um entendimento pleno dos sistemas e impactos ambientais envolvidos[13].
Ao contrário do que dizem as críticas, os sistemas tradicionais de agricultura de coivara provaram ser produtivos pelo simples fato de que continuam a sustentar milhões de famílias vivendo em diversos contextos socioeconômicos. Ademais, produzem paisagens complexas, caracterizadas por altos níveis de biodiversidade, que é mantida pelos povos indígenas e comunidades tradicionais. Com base nestes aspectos, defensores das práticas agrícolas com uso do fogo advogam a sua inclusão em políticas públicas para a agricultura, inclusive nas ditas áreas protegidas.
Desta forma, o uso do fogo é parte de um sistema que deve ser compreendido como uma forma de manejo tradicional das florestas e vegetação nativa a longo prazo – o que contrasta com os processos de desmatamento praticados por fazendeiros e grileiros para o estabelecimento de pastagens permanentes para a criação de gado.
Ribeirinhos e povos tradicionais da região do médio Solimões, no Amazonas, relatam que o fogo tem um papel essencial na abertura de áreas para os cultivos e para a nutrição dos solos.
Eles não compartilham a visão de que o fogo por si só degrada os solos e explicam que o uso repetido sem respeitar o pousio é o que causa o “cansaço” das terras[14]. Estudos recentes[15] corroboram a visão dos agricultores ao afirmar que, quando praticados em sua “forma tradicional”, em pequena escala e usando tecnologias de baixo impacto, sistemas de coivara são sustentáveis. Uma revisão da literatura global sobre os impactos da agricultura de coivara nos solos[16] enfatiza essa posição, identificando que essa prática “não seria insustentável per se em relação às dinâmicas de solos”. São determinantes demográficos, como o crescimento populacional e urbanização, em contextos de fragmentação territorial, somados às mudanças climáticas e ambientais, que podem ampliar as pressões sobre as sociedades praticando agricultura de coivara. Se esses fatores induzem mudanças no uso da terra, como um aumento no número de ciclos de cultivo e redução nos períodos de pousio, a resiliência desses sistemas pode ficar comprometida.
Infelizmente, o avanço da fronteira agrícola – frequentemente por meio da grilagem das terras tradicionalmente ocupadas por povos e comunidades – e de atividades econômicas ilegais, como o garimpo e o saqueio madeireiro, tem implicado em pressões para a degradação ambiental e restrição de uso ou fragmentação dos territórios. Um exemplo específico recente inclui o incremento na fuga do fogo usado para estabelecer roças nas florestas ao redor de comunidades onde residem povos indígenas e comunidades tradicionais. Moradores da RESEX Tapajós-Arapiuns, no Pará, relatam que transformações diversas – incluindo a degradação da floresta por atividades de madeireiros clandestinos e mudanças climáticas locais (aumento do calor e alterações nos regimes de chuva) – contribuem para o aumento de incêndios acidentais oriundos de atividades agrícolas, que, no entanto, permanecem como estratégias essenciais para a sobrevivência das famílias.
É preciso ressaltar que a duração suficiente do pousio, fundamento de todos os sistemas de roças itinerantes, está ligada à garantia da posse e uso dos territórios por suas populações, além da manutenção dos processos de transmissão de conhecimentos e práticas agrícolas, extrativistas e de manejo da paisagem (transmissão oral, por vivência prática cotidiana etc.). Desde que mantidas as bases sociais, territoriais e ambientais para a sua continuidade, os agroecossistemas tradicionais podem se manter produtivos a longo prazo. Portanto, as acusações de que o uso do fogo por povos indígenas e comunidades tradicionais é responsável pela intensificação dos incêndios florestais ou acarretam destruição do ambiente e perda de biodiversidade são falsas e levianas e, na prática, servem como uma cortina de fumaça para acobertar a origem de grande parte dos incêndios florestais.
Tal qual empregado em muitas grandes propriedades do agronegócio ou em terras públicas apropriadas por este, o fogo – associado ao desmatamento e à grilagem – também é usado (em conjunto com outros ataques) como instrumento para violentar Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e de outras comunidades tradicionais, Reservas Extrativistas (Resex) e Assentamentos da Reforma Agrária e, assim, ameaçar e expulsar as populações locais e se apropriar de suas terras.
Notas
Padoch, C.; Pinedo-Vasquez, M. Saving Slash-and-Burn to Save Biodiversity. Biotropica, v. 42, n. 5, p. 550–552, 2010.
Sobre percepções, ver: Steward, A.M.; Rognant, C. e Brito, S.V. Roça sem fogo: a visão de agricultores e técnicos sobre uma experiência de manejo na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, Amazonas, Brasil. Biodiversidade Brasileira, v. 6, n. 2, p. 71–87, 2016.
Kleinman, P.J.A.; Pimentel, D. and Bryant, R.B. The ecological sustainability of slash-and-burn agriculture. Agriculture, Ecosystems & Environment, v. 52, n. 2, p. 235–249, 1995.; Pedroso Júnior, N.N.; Murrieta, R.S.S. and Adams, C. The slash-and-burn agriculture: a system in transformation. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 3, n. 2, p. 153–174, 2008.
Ver a página 720 de: Ribeiro Filho, A.A., Adams, C. and Murrieta, R.S.S. The impacts of shifting cultivation on tropical forest soil: a review. Impactos da agricultura itinerante sobre o solo em florestas tropicais: uma revisão. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 8, n. 3, p. 693–727, 2013.
Há séculos, os povos indígenas e comunidades tradicionais do Cerrado e Amazônia, com base no intenso conhecimento sobre os ecossistemas locais, elaboraram e com sabedoria vêm manejando complexos sistemas de produção agrícolas, extrativistas, de criação animal e de prevenção de incêndios. O fogo é um importante elemento das práticas utilizadas nestes sistemas, e está integrado aos modos de vida destes povos e comunidades, garantindo uma produtividade adequada à reprodução de seus modos de vida. Esta forma de manejo da paisagem propicia a manutenção ou mesmo o incremento da biodiversidade.
É essencial conhecer as bases para o uso do fogo e as práticas tradicionais específicas utilizadas em sistemas agroextrativistas, de criação animal e de manejo da paisagem, para combater a sua criminalização, promover a agroecologia e responsabilizar quem fere direitos.
Angela May Steward é professora e pesquisadora no Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares, Universidade Federal do Pará – INEAF/UFPA
Antônio Veríssimo da Conceição é liderança indígena e ativista ambiental, Aldeia Cocalinho, Terra Apinajé, Cachoeirinha – TO
Fábio Pacheco é coordenador do Programa de Agroecologia da Associação Agroecológica Tijupá – MA
Franciléia Paula de Castro é engenheira agrônoma e educadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE em Mato Grosso
Geraldo Mosimann da Silva é agrônomo, pesquisador e consultor independente, Belém – PA
Paulo Rogério Gonçalves é técnico da Associação Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins – APATO