Fonte: João Fellet – BBC News Brasil | Foto: SEMAD/MG –
Com só 60 mil habitantes, o município goiano de Cristalina é um dos berços de um sistema que leva água e eletricidade aos lares de cerca de 60 de milhões de brasileiros.
Encravado no Cerrado, o município abriga 256 rios e riachos que desembocam no Paranaíba, um dos principais formadores do rio Paraná — cuja bacia abarca boa parte dos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás e o Distrito Federal.
Hoje, porém, vários rios que integram a bacia vivem a menor vazão já registrada, gerando temores de um apagão no sistema elétrico brasileiro e levando pesquisadores a apontar para a relação entre o desmatamento no Cerrado e a crise hídrica no centro-sul do Brasil.
Grande parte da vazão do Paraná se deve a rios que nascem em áreas de Cerrado bastante desmatadas nas últimas décadas — caso de Cristalina e dos municípios vizinhos, no entorno de Brasília.
Do alto, a paisagem da região hoje lembra um caderno de geometria, com uma profusão de círculos e linhas retas criadas por máquinas agrícolas.
Segundo o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no Brasil, de 1985 a 2019, a área coberta pelo Cerrado diminuiu 33% na microbacia hidrográfica daquela região, a Alto Paranaíba 3.
Em toda a bacia do Paraná, que também inclui trechos de Mata Atlântica, foram destruídos 4,2 milhões de hectares de vegetação nativa no mesmo período — uma perda de 17,6%. A área desmatada é 127 vezes maior que o município de Belo Horizonte.
Hoje, resta na bacia 22,4% da cobertura natural original.
Para pesquisadores entrevistados pela BBC News Brasil, o desmatamento agrava a escassez nos reservatórios do Paraná, responsáveis pela maior capacidade de geração de energia hidrelétrica do país.
“É uma resposta preguiçosa atribuir a variação nos reservatórios apenas ao El Niño ou à La Niña”, diz o geógrafo Yuri Salmona, doutorando em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UnB).
Salmona se refere a explicações para mudanças nas vazões de rios brasileiros que só levam em conta fatores climáticos. No caso da seca atual na bacia do Paraná, há forte influência da La Niña, resfriamento periódico nas águas do Oceano Pacífico que tende a reduzir as chuvas no centro-sul do país.
Para Salmona, porém, esses grandes fenômenos “são só parte da reposta”.
Nos últimos anos, vários especialistas têm associado o desmatamento na Amazônia à diminuição das chuvas em outras partes do Brasil. Segundo eles, a derrubada das árvores faz com que a floresta deixe de bombear para a atmosfera uma imensa quantidade de água que posteriormente se transformaria em chuva, os chamados “rios voadores”.
Já Salmona e outros pesquisadores estudam o impacto que o desmatamento do próprio Cerrado tem na oferta de água na região.
O geógrafo está finalizando uma pesquisa na qual compara a vazão de várias bacias hidrográficas do Cerrado com os índices de chuva e de ocupação do solo nesses locais nas últimas décadas.
Ele afirma que, embora em algumas bacias as chuvas venham realmente diminuindo, a redução na vazão dos rios tem sido quase generalizada e ocorreu até em regiões do bioma onde as chuvas mantiveram os padrões históricos.
Para Salmona, os resultados mostram que a substituição da vegetação nativa por lavouras têm impactado o fluxo dos rios da região.
A pesquisa, produzida com o apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), deve ser publicada em uma revista científica nos próximos meses.
Como o Cerrado regula os rios
Para entender como o desmatamento no Cerrado impacta o fluxo dos rios, é preciso conhecer a relação do bioma com as águas.
Não é por acaso que o Cerrado é conhecido como o “berço das águas”, diz o engenheiro ambiental Arnaldo José Cambraia Neto, autor de uma dissertação de mestrado na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, sobre o papel do bioma na regulação dos rios da região.
Ocupando o Planalto Central e se estendendo por 25% do território nacional, o Cerrado é o ponto de origem de oito das doze bacias hidrográficas brasileiras. Lá nascem muitos rios que rumam para outras regiões brasileiras, como o São Francisco, o Tocantins, o Xingu e o Araguaia.
Esses rios correm o ano todo, embora o Cerrado possa passar vários meses na estação seca sem receber uma só gota de chuva.
Ao longo de pelo menos 40 milhões de anos, as plantas do Cerrado desenvolveram raízes longas e ultrarramificadas para buscar água nas profundezas e retirar nutrientes dos solos naturalmente pobres da região.
As raízes de uma árvore do Cerrado se entrelaçam com as das plantas vizinhas, formando uma espécie de esponja debaixo da terra. Na estação seca, essa esponja retém umidade no solo, garantindo a sobrevivência das plantas e dos animais que delas dependem.
Já na estação chuvosa, a esponja encharca e permite que a água infiltre até depósitos subterrâneos, os lençóis freáticos e aquíferos.
São esses depósitos que alimentam as nascentes dos rios, garantindo que eles continuem fluindo mesmo quando as chuvas cessam.
Cambraia diz que 80% da água dos rios do Cerrado tem origem subterrânea. Ou seja, ela vem principalmente da chuva que infiltra no solo e, percorrendo os sulcos criados pelas raízes, consegue chegar aos lençóis freáticos e aquíferos.
Avanço da agropecuária
Mas o funcionamento desse sistema pode ser gravemente golpeado quando a vegetação nativa do Cerrado é substituída por lavouras como as de soja, milho ou algodão, diz o geógrafo Yuri Salmona, da UnB.
Segundo o MapBiomas, 43,7% do Cerrado já foi destruído para dar lugar à agropecuária — só em 2020, o bioma perdeu 7,3 mil quilômetros quadrados, alta de 12,3% em relação ao ano anterior.
Como a vegetação nova tem raízes curtas, a água da chuva não infiltra tanto no solo e tende a evaporar ou escorrer até algum rio. Assim, diz Salmona, em vez de ir para o depósito subterrâneo para ser liberada à superfície ao longo do ano, a água aumenta a vazão dos rios no período chuvoso.
Salmona diz que o desmatamento por si só já tende a reduzir a vazão dos rios no período seco, mas o impacto costuma ser ainda maior quando a vegetação nativa dá lugar a lavouras irrigadas.
É o caso, por exemplo, do que ocorreu na região de Cristalina. Segundo um relatório divulgado em 2020 pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), Cristalina é o município com a terceira maior área irrigada por pivôs do país, e os dois primeiros do ranking também ficam na região, na bacia do Paranaíba.
Pivô central utilizado para irrigar lavouraPara funcionar, esses equipamentos puxam a água de rios, nascentes ou de poços subterrâneos, impactando a vazão dos cursos d’água ou prejudicando a recarga dos aquíferos. A irrigação tende a aumentar a produtividade e a permitir que alimentos sejam cultivados mesmo em períodos de seca.
Segundo um relatório da Agência Nacional de Águas (ANA) publicado em 2015, a irrigação é responsável por 89,5% do consumo de água na bacia do Paranaíba, enquanto o abastecimento público responde por 2,9% do uso.
Em tese, se não fosse usada nas lavouras, essa água engrossaria a vazão de rios da bacia do Paraná e poderia, por exemplo, abastecer alguma cidade no Triângulo Mineiro ou ajudar a mover as turbinas da hidrelétrica de Itaipu, a 1.500 km dali.
Em 10 de junho, a BBC pediu à ANA uma entrevista sobre a relação entre desmatamento, irrigação e falta d’água na bacia do Paraná, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Segundo um relatório publicado pela agência em 2021, a irrigação responde por 49,8% da demanda de água em todo o Brasil, seguida pelo abastecimento humano urbano (24,3%), indústria (9,6%), uso animal (8,4%) e outros fins.
E a atividade tende a crescer. Um relatório da mesma ANA estima que a área irrigada no Brasil aumentará 76% entre 2019 e 2040. Boa parte desse incremento deve ocorrer justamente em áreas de Cerrado na bacia do Paraná.
Quando preservado, Cerrado acumula água no solo e garante o fluxo dos rios mesmo nos períodos secosNa última terça-feira (16/6), a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM), disse que “a ampliação das terras irrigadas precisa ser vista como uma ferramenta estratégica para o aumento da produtividade”.
“Temos 3% da produção agrícola irrigada, enquanto a média mundial é de 20%”, afirmou a ministra.
Cristina citou um estudo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) segundo o qual o Brasil tem condições de aumentar sua área irrigada em quase oito vezes.
A ministra diz que, entre outros benefícios, o avanço da irrigação gerará empregos, ampliará a renda dos agricultores e aumentará as exportações do Brasil.
Especialistas alertam, porém, para os desafios de expandir a atividade num cenário em que a escassez de água se torna cada vez mais frequente em partes do país — o que pode se agravar com reduções nos padrões de chuvas causadas pelas mudanças climáticas e pelo desmatamento na Amazônia.
Para o geógrafo Yuri Salmona, em vez de aumentar a área irrigada, é preciso ampliar o controle sobre as licenças já concedidas, já que hoje não se sabe se os agricultores respeitam os limites que lhes são impostos.
Salmona também defende que haja um mapeamento das regiões de nascentes e recarga de aquíferos, que devem ser consideradas prioritárias para a conservação.
Para o geógrafo, com solos e rios mais protegidos em áreas sensíveis, o país estará mais preparado para lidar com alterações climáticas como as provocadas pela La Niña.
“Se esses fenômenos existem, e eles existem, eles têm uma periodicidade, como nós podemos contorná-los e mitigá-los?”, questiona.
“Será que é irrigando mais, ocupando mais, desmatando nascentes? Ou será que é tendo um plano de gestão da bacia em que se determina o quanto de água pode ser usado, se mede se a pessoa está usando e se protege as cabeceiras?”