Ludmila Almeida/Articulação Agro é Fogo
Nem chegamos ao período de estiagem e os incêndios já são maiores do que o ano passado. E quem mais sofre com isso são as comunidades tradicionais.
“Se ele [fazendeiro] tá pondo fogo na natureza, ele não está atingindo só mato, algumas pessoas e bicho, mas está atingindo ele no futuro”, inicia Leonida Aires, da Comunidade Pantaneira Barra de São Lourenço, de Mato Grosso do Sul, em sua fala durante a Audiência Pública na Câmara dos deputados, em Brasília. Junto a Comissão Externa de Queimadas em Biomas Brasileiros, coordenado pela Deputada Professora Rosa Neide, na quinta-feira, dia 19 de maio, a Articulação Agro é Fogo apresentou e debateu denúncias sobre como se encontra a situação de direitos humanos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais da Amazônia, Cerrado e Pantanal do Brasil
Para expor o grave cenário socioambiental provocado pelos incêndios e intenso desmatamento, em parceria com o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA), foi entregue à Comissão uma Nota Técnica pautada nos casos apresentados no Dossiê Agro é Fogo. Além disso, representantes dos territórios e coordenadoras de organizações sociais reafirmaram a necessidade de maior orçamento e ações efetivas dos governantes em relação à prevenção e combate aos incêndios.
O fogo criminoso vem diretamente do modelo de agronegócio que atua aliado a um comboio de elementos para desmatar, grilar, expulsar as comunidades, envenenar a terra e água. Por isso, a Audiência, um momento de ouvir as denúncias dos povos que sofrem a violência, demonstrou o quanto o tal “desenvolvimento” significa passar por cima de tudo e de todos.
Os povos e comunidades tradicionais, que se organizam conservando seu território e, portanto, garantindo o futuro da humanidade, permanecem em constante ameaça. Não à toa, quando o assunto é conflitos por território, também encontramos alta incidência de focos de incêndio. As violências no campo se sobrepõem, como afirmou os dados apresentados na Audiência por Isolete Wichinieski, da Comissão Pastoral da Terra e membra da Articulação Agro é Fogo.
Segundo levantamento, os conflitos por terra envolvendo o fogo (2021) concentram 47% nas áreas do Cerrado e suas transições, na Amazônia contabilizam 25% e no Pantanal 6% do total. Somado a isso, no ano de 2021, foram 37 mil famílias afetadas pelo uso do fogo como arma nos conflitos no campo. Além disso, os incêndios destroem não só o componente material, mas, principalmente, afeta o sagrado e os saberes dos povos, isso se mostra em relação às casas de reza, violência que já envolveu quase 2.5 mil famílias no Brasil.
Cerrado, Amazônia e Pantanal estão em chamas e como documenta o Dossiê Agro é Fogo, as lideranças das comunidades tradicionais e organizações sociais durante a Audiência, os incêndios tem como carro chefe o agronegócio. Esse ano estamos chegando ao período de estiagem com uma grande quantidade de focos de incêndios.
Conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), até a metade de maio deste ano mais de 5 mil focos de incêndios foram contabilizados só no Cerrado, isso significa 25% a mais do que o mesmo período ano passado; Na Amazônia, já são mais de 4 mil focos, 18% a mais e no Pantanal os focos já beiram a quantidade de todo o ano de 2021 nesta região.
Na Amazônia, Cerrado e Pantanal tem gente!
A sociobiodiversidade, como é respaldado pelo Dossiê Agro é Fogo, não existe sem as pessoas em seus territórios. A fragilização de tais regiões, também é a fragilização das pessoas, de sua saúde, de sua sobrevivência e permanência onde se vive a séculos. Não existe proteção da Amazônia, Cerrado e Pantanal sem reconhecer que nesses lugares tem gente em luta por suas casas e se comportam como linha de frente contra o desmonte dos modos de viver.
“Na Floresta Amazônica tem pessoas, tem a biodiversidade. O agronegócio mata sim, polui a água sim! Será que é bom beber água contaminada por mercúrio, como o povo Yanomani passa todos os dias? Será que nós, que moramos aqui na cidade, nos centros, aguentaríamos isso? O povo Yanomami está morrendo!”, denuncia ao pedir que é preciso defender o direito dos povos indígenas, pois a violência sobre eles é constante.
“Sabemos que em relação ao Pantanal, nós não podemos chamar de queimadas, mas de incêndios criminosos. É um dos biomas mais frágeis, mas rico em biodiversidade. Falar da maior área úmida é muito bonito, mas olhar valorizar quem conserva, quem produz, quem faz o Pantanal ser o que é hoje é muito difícil. É preciso restaurar o Pantanal, restaurar as conexões que existem no Pantanal”, relata Cláudia Pinho, coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras (Mato Grosso), ao ressaltar que o Pantanal sempre foi habitado por povos indígenas e comunidades tradicionais.
Esse país não respeita as comunidades tradicionais
As falas foram pautadas pela denúncia e anúncio dos povos e comunidades tradicionais que, mesmo diante das cicatrizes do fogo do agronegócio, persistem em busca de seu direito à vida digna. Entre outros temas tratados na Audiência, também foi exposto a inconstitucionalidade do marco temporal, a ser votado em junho, pelo Supremo Tribunal Federal.
“Existe uma programação de ataque aos direitos dos povos indígenas e também aos direitos dos povos tradicionais. Existe uma programação constituída, principalmente, pelos governantes desse país que fere a Constituição de 1988. A tese do marco temporal é inconstitucional e prejudica a vida dos povos indígenas“, pontua Eliane Martins, coordenadora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) regional Goiás/Tocantins, sobre a luta secular dos povos indígenas contra a invasão e manutenção de seus territórios.
Davi Krahô, vice-Cacique da Aldeia Takaywara, localizada em Lagoa da Confusão, no Tocantins, conta em sua fala que a maioria da população indígena do Brasil vive no Cerrado, uma das regiões mais atacadas pelo agronegócio e pelos seus incêndios, como demonstrou os dados do CEDOC-CPT.
Acabar com o Cerrado é acabar com a sabedoria indígena, é acabar com a sociobiodiversidade, com o maior aquífero do mundo e com o território mais antigo do planeta. Mas para impedir isso, é preciso criar condições para que os povos estejam em paz em seus territórios.
“O meu território não está demarcado, o governo brasileiro não dá valor ao território indígena, ele quer invadir, ele quer aprovar mineração, ele quer que faça incêndios para pastagem. Os territórios indígenas estão cercados pelos projetos de monocultura e isso atinge diretamente a nós, com indígenas morrendo de doenças crônicas. Sem água nós não vivemos, mas sem soja vivemos”.
Ainda sobre o desrespeito a quem protege não só os direitos humanos, mas o direito da sociobiodiversidade, Leandro dos Santos, liderança quilombola da comunidade de Cocalinho, Maranhão, enfatizou o quanto os incêndios prejudicam, a anos, a subsistência e a sabedoria de cura, passada de geração a geração, no quilombo.
“Falar dos incêndios não é fácil. Estou na região de fronteira agrícola, que é o MATOPIBA, que abrange boa parte do Cerrado que está sendo bastante destruído. Com isso, a gente tem muitas perdas de alimentos, hoje não temos mais pequi, não temos mais mangaba, hoje nós não temos mais as plantas medicinais”.
“Os conflitos no campo, a gente não pode dizer que é só a violência que os povos e comunidades tradicionais sofrem, mas é a resistência que a essa violência é colocada. Então, os conflitos existem porque as comunidades, elas se colocam na defesa de seu bioma”, diz Isolete Wichinieski..
O fogo nas mãos do agronegócio provoca um desequilíbrio permanente
“Não vou falar que o fogo é ruim, que não é, mas a forma como ele é usado, as pessoas usam o fogo de má fé. Algumas pessoas acham que são donos das coisas e não pensam na vida. Eu vejo essas pessoas como se fossem zumbi, porque sabe que tá matando a vida, sabe que tá matando o futuro, sabe que tá matando a si próprio”.
Leonida Aires, durante a Audiência, contou o quanto o perigo e terror dos incêndios não estão apenas no momento que ocorre, mas, principalmente, em suas consequências. Até os dias de hoje, quase dois anos depois de um dos maiores incêndios à comunidade, as pessoas ainda sofrem com o resultado do fogo ateado por fazendeiros da região para formar pasto e produzir monocultura. “Eles são um bando de zumbis, porque não têm a capacidade de pensar, só pensam em dinheiro”.
Depois do fogo veio a chuva de cinzas, que além de ocasionar problemas de saúde, ainda provocou a morte de uma criança. A dor que esse crime faz é para todo a vida, lembra a liderança sobre a tragédia, a luta das pessoas para apagá-lo, a falta de água potável e a morte dos alimentos. Esse desequilíbrio gerado pelos incêndios e desmatamentos ainda provoca, conforme Leonida, o aparecimento de muitos ratos, cobras e onças nas regiões e nas casas.
“Na ilha do Bananal, que é a maior ilha fluvial do mundo, no período crítico de agosto a outubro tem a renovação de pastagem onde tocam fogo para renovar o pasto. O ano passado ficaram mais de 60 dias para apagar o fogo da ilha do Bananal e só apagou porque Papã mandou uma chuva aí apagou o fogo”, relata a liderança Krahô.
Para invadir Terras Indígenas (TI) e grilar, o agronegócio incendeia, usa o fogo como arma para estabelecer domínio sobre a região e ameaçar os povos, como confirma Davi Krahô. Por outro lado, o fogo nas mãos das comunidades tradicionais, que é controlado e usado com a sabedoria de séculos, significa vida.
“O fogo causa destruição quando a pessoa usa ele para destruir. O fogo faz parte do povo Krahô, mas tem que saber como conduzir o fogo, porque o usamos no dia a dia. Nós temos o manejo do fogo, sabemos conduzir o fogo no território, por isso, temos nossa brigada, para que no período crítico o fogo não chegue na comunidade”.
A defesa é pela vida e pela existência
Para o enfrentamento e reversão do quadro, Bárbara Dias, da Articulação Agro é Fogo, relatou algumas recomendações documentadas na Nota Técnica junto ao Olma, sublinhando que os governantes tomem outra postura diante dos Projetos de Lei que desrespeitam os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, ao validar o projeto agrominerador, do hidronegócio, do desmatamento e da grilagem que são intrínsecos aos incêndios criminosos.
A Comissão Externa, pela deputada federal Rosa Neide, ressaltou que a política nacional de manejo do fogo está no senado e em trâmite. E ainda lembrou sobre o quanto a negligência sobre esses temas é constante, apesar de se ter todas as informações a respeito do “Dia do Fogo” e de quem foram os mandantes do crime, o delegado que estava à frente não tomou as devidas providências, pontuou a deputada.
“Muitas das vezes, os incêndios criminosos são provocados aqui direto de Brasília, porque os fazendeiros, os produtores de soja, de cana e de eucalipto, muito deles são deputados nas regiões e que tem apoio das assembleias legislativas e que colocam fogo criminalmente nos territórios”, contextualiza Eliane Martins, do CIMI (GO/TO).
A comissão, que também já se reuniu com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), se prontificou a divulgar os dados da Articulação Agro é Fogo e do CEDOC-CPT para fortalecer ações que respaldem as comunidades tradicionais frente ao processo de violência configurado pelos e com os incêndios.
“Estar em Brasília é demarcar territórios também, demarcar territórios da nossa existência enquanto diversidade de grupo, enquanto demandantes de políticas públicas, mas, principalmente, pela visibilidade que o Estado brasileiro precisa nos enxergar enquanto sujeitos de direitos que estamos nos territórios nesse vasto país”, finaliza Cláudia Pinho, coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras (Mato Grosso).
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