FOGO NO PANTANAL: é a casa das comunidades tradicionais pantaneiras que queima

Por Cláudia Sala de Pinho

Quando se pensa em Pantanal, o que vem à mente são as grandes áreas cheias de água. De fato, o Pantanal é a maior área alagável contínua do mundo. Localizada no coração da América do Sul, compreende parte da Bolívia, do Paraguai e tem sua maior extensão no Brasil, abrangendo os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Para além desse imaginário de natureza exuberante, esse ecossistema é composto por um mosaico sociocultural de comunidades tradicionais que se autoafirmam como Pantaneiras[1]. São coletivos, conjuntos ou grupos de famílias que habitam, convivem e vivem o Pantanal, com seus modos de vida moldados pelos ciclos das águas.

As comunidades pantaneiras têm profundos conhecimentos ambientais, ecológicos e culturais que incidem sobre o uso e o manejo dos bens naturais e do território pantaneiro. Para elas, o Pantanal é uma grande bacia que só existe porque existe a beira, a parede e o fundo da bacia. É um grande corredor biocultural e ambiental que faz a conexão do Cerrado com a Amazônia.

Fruto do encontro entre povos indígenas que habitam a região antes da chegada dos europeus e negros vindos do continente africano, as comunidades estão organizadas em seus territórios de uso diferenciado do espaço, seja pela agricultura familiar, pela pesca, pelo extrativismo e por outras formas de ocupação.

Elas estão nos vários ambientes do Pantanal, com características distintas, moldados pelos ciclos de chuvas que condicionam o processo de enchente, vazante e seca, ou, como é conhecido, o pulso anual de inundação. Ele acontece, principalmente, entre os meses de outubro e janeiro no Alto Pantanal, e entre dezembro e março no Baixo Pantanal. Esses períodos têm mudado muito nos últimos anos. Recentemente, o período de seca extrema tem sido um grande desafio para as comunidades que o habitam, cada ano mais intenso, com a diminuição do período chuvoso na região.

Notas
Autoafirmação baseada na Convenção 169/OIT e no Decreto 6040/2007.

Esse contraste de períodos, juntamente com os incêndios florestais no ano de 2020, têm assolado o Pantanal, ocasionando diversos impactos nos territórios tradicionais. A tragédia ambiental provocada pelo fogo, com exposição da vegetação em chamas e dos animais mortos, teve bastante destaque na mídia. Poucos divulgados, porém, têm sido os impactos para as comunidades que o conformam. Quando o Pantanal queima, o que pega fogo é a casa dessas comunidades.

De janeiro a outubro de 2020, período mais crítico dos incêndios, o fogo atingiu cerca de 4,1 milhões de hectares do Pantanal, segundo o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)[2], o que corresponde a 26% de sua área. Comparando com o ano de 2019, houve um aumento de quase três vezes da área queimada.

Para as comunidades pantaneiras, o avanço do fogo não foi surpresa, elas já haviam alertado que haveria um período de seca intensa, pois havia alguns sinais, como a cheia de baías que enchiam e vazavam não estar acontecendo. No entanto, o fogo veio de uma forma avassaladora. Em parte, isso se explica porque o fogo na região é diferente daquele que acontece na Amazônia ou no Cerrado, já que o Pantanal é um grande depositário de matéria orgânica quando ocorre a baixa das águas da vazante para a seca. Essa matéria orgânica fermenta e acumula gases; assim, o fogo acontece também em camadas subterrâneas, o que o torna muito difícil de controlar. A seca e o fogo subterrâneo espalharam os focos de incêndio criminosos.

Incêndios criminosos começaram em fazendas

As Comunidades Tradicionais Pantaneiras têm chamado o fogo que aconteceu no Pantanal do ano de 2020 de incêndios florestais, por ser criminoso e intencional, provocado pela ação humana[3].

No Pantanal, as práticas do desmatamento e fogo pelo agronegócio estão lado a lado, e às vezes, são sequentes. A produção de gado e as plantações de soja concentram-se na beira da bacia, contribuindo para um ciclo dos incêndios florestais que se inicia com o desmatamento, seguido de fogo para limpeza de áreas e transformação em pastagem que, no Alto Pantanal, podem mais tarde se converter em área de produção de soja ou outras monoculturas. Essa expansão afeta os territórios tradicionais, pois interfere na dinâmica de funcionamento do ecossistema do qual as comunidades dependem.

Esse ciclo é uma das explicações da catástrofe enfrentada naquele ano, cujas repercussões continuam no presente, com a ameaça de continuidade do fogo de igual proporção. Segundo dados do Inpe[4], de janeiro a setembro de 2021 houve mais de 5 mil focos de incêndios no Pantanal. No ano de 2020, haviam sido 22.116 focos. O agronegócio foi o grande estopim que fez espalhar os incêndios em grande escala.

Notas

LASA, 2021.

Assim como as comunidades pantaneiras, a articulação Agro é Fogo tem evitado o uso da palavra “queimadas” para se referir aos incêndios criminosos que têm assolado o país. Dessa forma, diferenciamos o fogo natural e o fogo usado tradicionalmente por comunidades camponesas do fogo criminoso provocado pelo agronegócio.

O Instituto Centro de Vida – ICV[5] identificou que, entre 1º de julho e 17 de agosto de 2020 em Mato Grosso, os incêndios florestais começaram em cinco fazendas de gado. Essa análise cruzou dados de focos de calor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), imagens dos satélites Sentinel-2 e Planet e mapeamento das áreas atingidas por incêndios da NASA. De acordo com a Repórter Brasil[6], esses pecuaristas vendiam gado para o grupo Amaggi, do ex-ministro e ex-senador Blairo Maggi, e para o grupo Bom Futuro, de Eraí Maggi, considerado o maior produtor de soja do mundo. Esses dois grupos são fornecedores das multinacionais JBS, Minerva e Marfrig.

Laudos de perícias[7] realizadas pelo Centro Integrado Multiagências de Coordenação Operacional do Mato Grosso (Ciman-MT) também apontaram que os incêndios registrados no Pantanal mato-grossense foram provocados por ação humana. O Cinan encaminhou esses documentos para a Delegacia de Meio Ambiente para que fosse aberto inquérito e os infratores responsabilizados, mas o processo não teve seguimento. Os ministérios Público de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, apresentaram um relatório técnico identificando que quase 60% dos focos de incêndios que afetaram o Pantanal em 2020 foram provocados por ações humanas, com probabilidade de ligação com atividades agropastoris[8].

Notas

Ver informe no site do governo de Mato Grosso.

Ver comunicação no site do Ministério Público em Mato Grosso do Sul.

De acordo com dados oficiais da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema)[9], entre os meses de janeiro e setembro de 2020, mais de 5 mil focos de calor foram localizados em propriedades privadas, cerca de 3 mil em terras indígenas e 890 em unidades de conservação. Mais de R$ 107 milhões em multas já foram aplicados por uso irregular do fogo. No total, o Estado aplicou R$ 805 milhões em multas por crimes ambientais, como queimadas e desmatamento ilegal[10].

Das cinco perícias realizadas pelo Cinam, chama atenção a realizada na Reserva Particular do Patrimônio Natural Sesc Pantanal, na região de Barão de Melgaço. Ela apontou que a causa do incêndio se deu pela queima intencional de vegetação desmatada para conversão em pasto para gado em uma fazenda na região, com o fogo adentrando a área da reserva. A equipe constatou a presença de madeiras, palanques de cerca e rodeios para o gado. Próximo a esse local a equipe também encontrou galões de óleo diesel que aparentavam terem sido utilizados para incendiar as pilhas de material vegetal derrubado[11].

No Mato Grosso do Sul, o Inpe também registrou recorde no número de queimadas de janeiro a dezembro de 2020, totalizando 8.809 focos de incêndios no Pantanal do estado. O município de Corumbá notificou 91% do total de queimadas com 8.105 pontos de calor[12].

A partir de imagens de satélite da NASA (agência espacial americana) e do Inpe, peritos da Polícia Federal encontraram vestígios que apontam que incêndios teriam começado em quatro propriedades rurais também em Mato Grosso do Sul[13]. A PF colheu depoimentos de trabalhadores das fazendas e de moradores que corroboram essa suposição. De acordo com a análise dos peritos, os focos de incêndio tiveram início no dia 30 de junho, quase na mesma hora, em quatro propriedades localizadas na região oeste do rio Paraguai. Para a PF e o MPF, esse fato indica que a prática de colocar fogo na vegetação para o plantio de pastagens pode ter sido uma ação combinada entre os fazendeiros.

Essas provas e evidências de que os incêndios são criminosos foram entregues pela Polícia Federal no mês de março de 2021, durante a segunda reunião extraordinária da Comissão Externa da Câmara dos Deputados destinada a acompanhar e promover uma estratégia nacional para enfrentar as queimadas em biomas brasileiros.

Notas

Ver comunicação no site do governo de Mato Grosso.

Documento apresentado em reunião da comissão sobre os incêndios no Pantanal na Câmara dos Deputados.

INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, 2020. Portal do Monitoramento de Queimadas e Incêndios Florestais.

Comunidades pantaneiras enfrentam prejuízos imensuráveis

Podemos dizer que, para o agronegócio, o fogo é um instrumento barato para limpar a área e muitas vezes, ampliar a pastagem. Para as comunidades tradicionais pantaneiras, que têm seus modos de vida manejando e utilizando o Pantanal, os incêndios florestais ocasionaram grandes transformações e devastações. Todos os seus saberes, fazeres e conhecimentos tradicionais estão intimamente ligados e se conectam com o ambiente em que vivem: o próprio Pantanal.

Uma das comunidades afetadas foi a comunidade pantaneira Barra de São Lourenço, no município de Corumbá. A comunidade foi atingida pelo fogo duramente. Três famílias tiveram de ser socorridas pelo Corpo de Bombeiros e uma criança morreu afogada, tentando escapar das chamas. A comunidade ainda enfrentou uma chuva de cinzas, que, somada à seca, deixou a água barrenta[14]

Assim, a devastação dos incêndios florestais é muito mais ampla do que pode aparentar à primeira vista. Houve perda de muitas roças e de áreas de cultivo. Comunidades inteiras deixaram de usar as águas dos rios, pois foram contaminadas pelas cinzas. Os impactos continuam: ainda estamos colhendo os prejuízos, e buscando alternativas para continuar existindo no Pantanal. É preciso recuperar os territórios de comunidades tradicionais pantaneiras, em especial na parte baixa do Pantanal.

Todas as formas de vida foram impactadas. Isso trouxe muito sofrimento no plano espiritual, segundo os nossos mais velhos. A resiliência tem sido nossa ferramenta de resistência para nos reconectarmos à nossa casa. De agora em diante, temos um grande trabalho de resgate ecológico para, assim, resgatar a harmonia espiritual. Não sabemos quanto tempo isso vai levar, mas sabemos que a força dos ancestrais será nosso alicerce!

No Pantanal tem gente!

No Pantanal tem Comunidades Tradicionais que resistem para continuar existindo!

Notas

Veja, neste dossiê, o caso de Barra de São Lourenço.

Cláudia Sala de Pinho é coordenadora regional da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira e ex-presidenta e conselheira do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais – CNPCT.